Mulher, indígena, religiosa, são três elementos que definem a Laura Vicuña Pereira, Catequista Franciscana que faz parte da Conferência Eclesial da Amazônia, em representação dos povos indígenas. Ela vê a nova conferência como algo “que une, que articula as Igrejas na Amazônia”, um avanço no caminho da sinodalidade, “que a gente possa realmente caminhar juntos, e formar esse rosto da Igreja na Amazônia”.
Na Amazônia, a Igreja tem rosto laical, o que faz com que “a Conferência, com esse objetivo de sinodalidade, pode potencializar essas experiências que já existem na Amazônia”. Junto com isso, é importante destacar o papel que a nova conferência pode ter em relação aos povos indígenas, vítimas do descaso das políticas pública, algo que se agravou ainda mais com a pandemia, chegando a denunciar a “omissão dos estados nacionais em relação aos povos originários”, que tem se organizado frente as ameaças externas que eles vem sofrendo.
A religiosa destaca la importância da resistência dos povos originários, dando um papel fundamental ao território. Diante disso, “a Conferência Eclesial da Amazônia, ela vem interligar essas diversas experiencias ancestrais, mas também vem ser uma voz profética contra todos esses projetos de morte que pesam sobre a Amazônia”, segundo a irmã Laura, que vê no Papa Francisco aquele que “cumpre aquilo que foi pedido para ele lá em Puerto Maldonado, que a Igreja possa fazer ouvir a nossa voz, que a Igreja defenda a nossa vida”.
A Conferência Eclesial da Amazônia se apresenta como uma grande novidade para a vida da Igreja. Não é mais uma conferência episcopal e sim uma conferência eclesial, onde além de bispos, cardeais, também tem a presença da vida religiosa, dos leigos e sobretudo de representantes dos povos originários. O que isso significa para a senhora?
Isso é a continuidade do kairos que a gente vivenciou na preparação e durante o Sínodo da Amazônia. No Documento Final e na Querida Amazônia, que é a exortação apostólica do Papa Francisco, já sinalizava um organismo que desse carne a todas as propostas, as mais de 150 propostas que temos no Documento Final. Eu pessoalmente, o vejo com grande alegria, porque o que nós temos aqui é uma Conferência Eclesial da Amazônia, uma conferência que congrega, que une, que articula as Igrejas na Amazônia para cada qual não ficar tomando decisões isolado com relação aos encaminhamentos do Sínodo, mas a gente ter, como insistiu o próprio Papa Francisco desde o início do seu papado, a questão da sinodalidade, que a gente possa realmente caminhar juntos, e formar esse rosto da Igreja na Amazônia.
Nesse campo da sinodalidade, em que pode mudar a Igreja da Amazônia e a Igreja universal com essa nova experiência que está sendo iniciada agora com a Conferência Eclesial da Amazônia?
Na Amazônia, sobretudo na Amazônia brasileira, eu conheci um pouquinho a Amazônia peruana, quando durante cinco anos eu vivi lá, como missionária no Vicariato de Puerto Maldonado, existe uma expressão de Igreja que é totalmente laical. Esse rosto da Igreja em que os leigos assumem as comunidades para que a fé, a Igreja, ela não morra nesses espácios. No Brasil, a gente teve toda essa experiência das comunidades eclesiais de base, que é justamente um exemplo da vivência da sinodalidade, desse caminhar juntos como Igreja, desse construir processos locais a partir da realidade.
A Conferência, com esse objetivo de sinodalidade, pode potencializar essas experiências que já existem na Amazônia, tanto peruana, quanto brasileira, como nos demais países. Como a gente vem de uma tradição aqui na Amazônia, em que a gente não tem o padre, a religiosa, mas a gente tem pessoas, líderes, que levam adiante toda a ação evangelizadora da Igreja. Potencializar isso que já existe, e claro ampliar dentro de um chamado a ser Igreja samaritana, em saída, serva, mas sobretudo, uma Igreja Madalena, que anuncia o Ressuscitado, que é capaz de nas situações de morte ter uma ação profética para que a vida possa existir.
Eu vejo assim, essa tal de sinodalidade, vamos potencializar essas experiências, e ampliar mais, articular mais, essas ações entre as Igrejas na Amazônia. A gente não tem uma luz para colocar em baixo da mesa, uma luz, quando ela começa irradiar, ela começa iluminar várias outras realidades. E quem sabe, a Amazônia não será essa luz para as Igrejas do mundo todo. A periferia fala ao centro, a periferia expressa uma possibilidade de bem viver a partir da proposta dos povos originários e amazônicos.
A senhora é indígena do povo kariri e trabalha com os povos originários. Como os povos originários estão vivendo este momento pós-sinodal e como eles estão enfrentando esta pandemia que estamos sofrendo nos últimos meses?
A situação na Amazônia como um todo, com a pandemia, ela se agravou mais e evidenciou para o Brasil e para o mundo a situação de descaso das políticas públicas que já existia neste território, e também é algo que está trazendo a tona toda a devastação que está acontecendo na Amazônia. Mas ainda não é suficiente para a gente coibir a ação do crime organizado nesta região. Crime organizado este que está sendo legitimado cada vez mais pela postura, pelo discurso e própria ação do governo brasileiro.
Essa omissão dos estados nacionais em relação aos povos originários agrava muito essa situação de pandemia. No passado os povos originários já viveram grandes epidemias que não puderam nem enterrar seus mortos. Novamente, com a pandemia, essa situação volta às comunidades indígenas com muita força, e algumas comunidades não conseguem celebrar seus rituais funerários, seus próprios rituais que dão sentido e harmonia para a sociedade. No meu caso específico, de indígena do povo Kariri, meus pais tiveram que migrar, ainda na década de sessenta, do Nordeste para a Amazônia. Por causa dessa situação, o contato com a vida direta da aldeia, a gente vão teve. Mas isso, a gente foi se dedicando na vida religiosa e como missionária entre os povos indígenas.
Como isso está atingindo a vida do dia-a-dia, especialmente no plano espiritual, aos povos originários?
Os povos indígenas, muitos deles se organizaram e estão fazendo o isolamento social dentro de seus próprios territórios, o que poderia ser uma situação muito cômoda, no sentido deles estarem dentro do seu próprio habitat, dentro do seu cotidiano. O que acontece é que os invasores, os grileiros, os madeireiros e os garimpeiros não fazem quarentena, e a gente vê que a ação dos invasores contra os territórios indígenas, vulnerabiliza mais ainda os povos, levando ao contagio do COVID-19.
Isso acarreta no cotidiano da comunidade que práticas de isolamento social, as vezes numa grande maloca, não tem como fazer o isolamento de uma pessoa, porque vive todo mundo junto. Práticas rituais como festa da menina moça, festa dos jovens, quando estão entrando na idade adulta, festas que ocorrem agora, por exemplo no povo karitiana, a festa da chicha, que dão a identidade para o povo e conseguem fazer com que o povo se torne unido, coeso, que exista uma harmonia dentro da comunidade, esses rituais, por conta das regras sanitárias, agora já não podem ser realizados nas comunidades.
O povo karitiana, eu vi também a reportagem do povo xavante, não podem realizar seus rituais funerários, e isso causa um desequilíbrio para a comunidade, como no caso do povo yanomami, aquela mãe que teve seu filho arrancado e não teve o corpo de seu filho de volta e ficou sem entender o que estava acontecendo. Isso é uma violência contra os povos indígenas. A gente vê que essa situação da pandemia da COVID-19 afeta diretamente o cotidiano das comunidades.
Quais as expectativas de futuro para os povos originários depois deste tempo de pandemia e como a Igreja católica na Amazônia, especialmente a través desta nova conferência eclesial, pode acompanhar a vida desses povos e continuar sendo essa resposta oportuna aos gritos dos pobres e da irmã mãe Terra?
Os povos indígenas, eles já superaram inúmeros traumas, inúmeras frentes colonizatórias, que interromperam seus projetos de vida, mas sempre continuaram na resistência, e essa resistência, ela está fundamentada nesse enraizamento com a terra. Por isso, o território, ele é tão importante na vida nossa, dos povos originários, dos povos amazônicos, que nos une, que nos conecta. Os povos originários, a gente tem uma categoria milenar, uma categoria ancestral, que pode responder e pode contribuir nessa grande crise planetária que a gente vive.
Porque os povos originários, eles têm uma vivência com a mãe Terra que ultrapassa qualquer projeto econômico. Se você conversa com o idoso, ele tem essa sabedoria, e a Igreja da Amazônia, assumiu no Sínodo, principalmente, ser aliada dos povos originários e amazônicos. Essa aliança é uma aliança de compromisso na defesa da vida, da terra e dos direitos. A Conferência Eclesial da Amazônia, ela vem interligar essas diversas experiencias ancestrais, mas também vem ser uma voz profética contra todos esses projetos de morte que pesam sobre a Amazônia, sobretudo neste momento que a gente vive agora. Iniciamos o verão amazônico, as queimadas já ultrapassam a média de outros anos, e a gente vive uma pandemia que ataca todo o sistema respiratório. A gente precisa gritar para o mundo todo, a gente precisa da ajuda de todo mundo para defender a Amazônia, para defender os povos que aqui vivem.
A senhora fala que precisa da ajuda do mundo. O Papa Francisco tem se tornado uma referência mundial como um dos grandes defensores da Amazônia. Como os povos indígenas contemplam o Papa Francisco?
A gente que em nível mundial, a gente tem o Papa Francisco como líder, no sentido genuíno da palavra, como aquele que traz uma voz de esperança, mas sem deixar de fazer a denúncia de todo esse modelo que produz a morte. Quando na festa do Espírito Santo, ele se referia à Amazônia, que precisava cuidar dos povos da Amazônia e que a vida está acima da economia, é uma grande voz em defesa dos povos que estão aqui. Ele cumpre aquilo que foi pedido para ele lá em Puerto Maldonado, que a Igreja possa fazer ouvir a nossa voz, que a Igreja defenda a nossa vida. E ele levou isso muito a sério, pela sua disponibilidade, pela sua trajetória de vida em defesa dos menos favorecidos, em defesa do pobre.