Celso Pinto CariasColunistas

Baixada Fluminense: África brasileira – Aporofobia

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Para início de conversa: a relação Baixada e Continente Africano nesta coluna não é paritária. A situação da África é muito mais complexa. As similaridades existem, mas queremos aqui falar de invisibilidade, desprezo aos pobres, ou usando o conceito que a filósofa Adela Cortina divulgou em livro: aporofobia (aversão ao pobre). 

Também não se pode deixar de mencionar que o Brasil tem outras regiões periféricas que poderiam muito bem estar aqui no lugar desta relação. Mas falo a partir do território no qual vivo desde a infância. 

A indignação que faz esta coluna existir está ficando sem força. Tenho sessenta anos, moro na Baixada Fluminense, Duque de Caxias, RJ, desde os nove. De lá para cá, a situação não melhorou tanto quanto pode parecer. Basta consultar dados como os do IBGE, entre outros. Porém, a coluna não pretende apresentar dados, mas sim fazer um grande esforço para colocar um pontinho de tinta no mapa da enorme contradição e hipocrisia que reina na sociedade brasileira. Reina, inclusive, entre pessoas que se afirmam religiosas. Reina entre pessoas que afirmam seguir o tal Jesus de Nazaré, o Cristo dos Pobres, mas que insistem em colocar Nele a coroa do poder dominador, de uma legitimidade vinda de Deus para manter seus privilégios. 

Em março de 2022, a Baixada viveu mais uma enchente. Não houve muitas vítimas fatais, como em Petrópolis. Mas afetou milhares de famílias que vivem um contínuo ciclo do construir e reconstruir. Pessoas, sim, seres humanos, gente, que serve de mão de obra barata para os que detêm a riqueza, ou os seus aliados que desejam ser iguais a estes que esbanjam sua fortuna em iates e viagens a Europa. E às vezes até sua força de trabalho é rejeitada por motivos torpes. Uma pessoa conhecida disse que foi indicada para uma vaga de cuidadora, chegando ao local de trabalho, a pessoa a ser cuidada, para o constrangimento da família contratante, falou explicitamente que não queria ser cuidada por uma pessoa preta. Os doentes às vezes são mais verdadeiros. 

Raquel Rolnik, urbanista de grande valor, diz que a sociedade atual até tenta aliviar a vida dos mais pobres, mas muitas vezes “inclui sem incluir”. Quando oferece, por exemplo, moradias com alguma dignidade, estas são afastadas dos grandes centros, em casas ou apartamentos minúsculos, precisando gastar um bom percentual de seus proventos em mobilidade urbana, com transporte de péssima qualidade, ou ainda jogados nas mãos de traficantes e milicianos. 

Dou aula na PUC-Rio, Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Da minha casa à PUC são 35 km. Mas posso levar até duas horas para chegar lá, seja de transporte público ou de carro, pois o trânsito só piorou nestes já quase 40 anos que faço este trajeto, pois sou “filho da PUC”, estou lá desde quando iniciei a graduação em 1983. Quando falo, em sala de aula, que na minha casa a água chega três vezes por semana, tem aluno que olha para mim com um rosto de incredulidade: “esse cara tá tirando onda de pobre”. Claro que não sou mais pobre, classe média (sic), mas a realidade da Baixada é isso. Por isso, o desejo de muita gente é sair. Ir para Ilha do Governador, Meier, quiçá Barra da Tijuca. Como se tal mudança significasse uma grande melhora de qualidade de vida.  

E assim, os anos vão passando e esta região com quase quatro milhões de habitantes, com um PIB elevadíssimo, pois existe uma economia maior do que muitas capitais do Brasil, mas que não se reverte em políticas públicas de qualidade para a maioria da população. 

Sem menosprezar, de forma alguma, a tragédia de Petrópolis foi muito noticiada, entre outras; há algo que só acontece em regiões periféricas, como recentemente as enchentes no Pernambuco. Quando acontecem tragédias na Baixada, é difícil que ela se torne uma pauta de vários dias na mídia. Uma vez, em uma palestra na PUC, falei para uma jornalista da Globo que o RJ, na época, quase não falava desta região, e nós estamos na região metropolitana. Outras cidades bem menores têm seus próprios telejornais. Agora melhorou um pouco.

A Baixada foi relegada à escravidão moderna. Deixada a governos onde a palavra “corrupção” é pouco para definir. Bandidos, milicianos e famílias que se revezam em governos que ao oferecer favores conseguem o beneplácito eleitoral de multidões. O povo fala que antes pisava na lama, agora não, mesmo que falte água, saneamento básico, saúde e educação; agora o seu bairro tem até banco (instituição financeira), embora as praças sejam ridículas. Lazer? Lugar para caminhar? A lista é enorme.  Mas, se chegaram até aqui, perdoem o desabafo do colunista.

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