ColunistasPadre Joaquim Jocélio

Fiéis ao Evangelho até o fim

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Concluímos nosso breve estudo sobre a Escritura tratando sobre um conjunto de livros do Novo Testamento (NT) chamado de Cartas Católicas. Na oportunidade, também apresentaremos a Carta aos Hebreus que não se encaixa nas divisões de blocos que se costuma fazer dos livros bíblicos. As cartas católicas recebem esse nome porque a palavra “católico” tem o sentido de “universal”. E esse termo pode ser pensado tanto em relação aos destinatários dessas cartas quanto aos seus conteúdos. As cartas paulinas, por exemplo, eram destinadas a uma Igreja específica (Corinto, Galácia, Filipos etc.), já as cartas católicas são dirigidas a todas as Igrejas. As cartas paulinas tratam de problemas específicos, já as cartas católicas apresentam questões mais gerais. Por isso são chamadas de católicas, ou seja, universais. São elas: Carta de Tiago, Primeira e Segunda Pedro e Judas. Outra característica dessas cartas é a pseudoepigrafia, ou seja, elas são atribuídas a certas personalidades, mas não foram escritas por elas. Não foram Pedro, Tiago e Judas que escreveram as cartas que recebem seus nomes. São escritos do final do primeiro século e início do segundo, muitas décadas depois da morte dos apóstolos.

A Carta de Tiago tem um estilo sapiencial, ou seja, traz profundas orientações para se viver a vontade de Deus no cotidiano da vida. Fala das tentações, do perigo que pode ser a língua, da discriminação, da fé como prática, critica a riqueza etc. Possivelmente, a carta é atribuída ao Tiago chamado de “irmão do Senhor” que tinha grande autoridade na Igreja de Jerusalém (Cf. Mc 6,3; At 15,13-21; Gl 1,19; 2,12). Dois temas muito importantes se destacam: A fé pelas obras e a centralidade dos pobres. O primeiro tema é muitas vezes colocado em oposição ao ensinamento de Paulo, pois este defendia que “o homem não se torna justo pelas obras da Lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gl 2,16), “o homem se torna justo através da fé, independentemente da observância da Lei” (Rm 3,28). Já Tiago ensina que a fé “sem as obras, está completamente morta” (2,17) e que “o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé” (2,24). E então, quem está certo? Os dois! Paulo e Tiago falam de coisas diferentes. Paulo fala de obras da lei, ou seja, as tradições e os costumes judaicos. Eles não salvam e sim a fé em Jesus. E essa fé não é entendida como algo simplesmente teórico; Paulo não despreza a exigência de uma prática cristã. Ele, inclusive, afirma que “em Jesus Cristo, o que conta não é a circuncisão ou a não-circuncisão, mas a fé que age por meio do amor” (Gl 5,6). É dessa ação de amor/caridade que Tiago trata ao afirmar: “com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé” (2,18). O segundo tema fundamental em Tiago é a centralidade dos pobres: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo” (2,27). Critica a discriminação feita ao dar, nas reuniões comunitárias, os melhores lugares para os ricos e desprezar os pobres (Cf. 2,1-4), pois questiona: “não foi Deus quem escolheu os que são pobres aos olhos do mundo, para torná-los ricos na fé e herdeiros do Reino que ele prometeu àqueles que o amam?” (2,5). Além disso, ao estilo dos profetas de Israel, Tiago faz a mais dura crítica do NT aos ricos e à riqueza (Cf. 5,1-6).

A Primeira Carta de Pedro é a exortação de um pastor que quer animar a comunidade diante das perseguições. Essa carta “está endereçada aos estranhos/estrangeiros residentes e aos forasteiros em trânsito que, a partir de sua conversão ao cristianismo, ainda se sentem estranhos e sem lugar no seu meio” (J. H. Elliott). O termo grego usado para designá-los é “paroikoi” [os sem casa, sem lar]. “Entre os paroikoi, contavam-se os escravos, os servos e os que constituíam a multidão de estrangeiros desclassificados e sem pátria, que careciam de cidadania ou em sua própria terra natal ou onde residiam” (J. H. Elliott). O autor os ensina a ter perseverança. Como eles não tinham muito poder, para não serem perseguidos, o modo de resistir era pelo exemplo de vida. Devem fazer a diferença a partir do amor: “Comportem-se de modo exemplar entre os pagãos, a fim de que eles, mesmo falando mal de vocês como se fossem malfeitores, ao verem as boas obras que vocês fazem, glorifiquem a Deus no dia do julgamento… Pois esta é a vontade de Deus: praticar o bem, fazendo calar a ignorância dos insensatos” (2,12.15). Essa é a identidade do cristão, amar, fazer o bem: “conservem entre vocês um grande amor, porque o amor cobre uma multidão de pecados. Pratiquem a hospitalidade uns com os outros, sem murmurar” (4,8-9).

A Segunda Carta de Pedro tem muitas semelhanças com a Carta de Judas; na verdade, esta foi usada, em boa medida, na formação da 2Pd. Aparece o tema da segunda vinda de Cristo e problemas com falsos profetas. É preciso guardar a fé incontaminada, por isso, é preciso “mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade” (1,7). A carta traz a ideia apocalíptica de uma nova sociedade: “O que nós esperamos, conforme a promessa dele, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” (3,3). Aparece um estilo de testamento espiritual assim como acontece com a Segunda Carta a Timóteo. 2Pd reafirma a soberania salvadora de Jesus (1,2-16; 3,11.14.17). Também chega a criticar o desprezo ético de alguns grupos: “Prometem a esses liberdade, mas eles próprios são escravos da corrupção, pois cada um é escravo daquele que o vence” (2,19). Possivelmente, é do início do séc. II; portanto, é o último texto a ser escrito do NT. Apesar de não ser muito conhecida e de ter um tom polêmico de disputa, a 2Pd é um bom exemplo de teologia pastoral: “procura compreender a raiz teológica da práxis, para levar o anúncio (o conhecimento) segundo a Escritura e o testemunho dos apóstolos, e finalmente voltar revigorados a uma prática renovada da vida” (C. Broccardo).

A Carta de Judas é um curto escrito que busca fortalecer a fé da comunidade; fé essa que está ameaçada por falsos profetas: “Infiltraram-se no meio de vocês alguns indivíduos que, desde há muito, estão inscritos para o julgamento. Eles são uns ímpios, que convertem a graça de nosso Deus em pretexto para a libertinagem e negam Jesus Cristo, o nosso único soberano e Senhor” (v 4). A carta é atribuída a Judas. Possivelmente, este Judas não é nenhum dos dois apóstolos com esse nome, mas um dos parentes de Jesus, já que o autor se apresenta como irmão de Tiago (Cf. Mc 6,3). Apresenta-se como mestre, não como apóstolo (v 3.17). Conhece e alude a textos apócrifos, ou seja, textos que tinham a pretensão de serem sagrados, mas não entraram na lista de livros inspirados (cânon), nem na lista judaica nem na cristã. Judas alude ao livro de Henoc (v 6.12-16), a Assunção de Moisés (v 9) e ao Testamento dos Doze Patriarcas (v 6-7). “O que mais torna a Carta de Judas original, no entanto, não é a quantidade de referências, mas a mediação da chamada literatura apócrifa” (C. Broccardo). 

A Carta aos Hebreus fala sobre o verdadeiro sacerdócio e sobre o verdadeiro sacrifício. Por muito tempo, foi considerado um escrito paulino, mas hoje, até seu gênero de carta e seus destinatários (os hebreus) são questionados. Na verdade, “poder-se-ia propor uma apresentação da ‘epístola de são Paulo aos hebreus’ em três pontos: 1) não é uma epístola; 2) não é de são Paulo; 3) não se dirige aos hebreus. Assim, seria muito melhor chamá-la ‘Pregação sobre o sacerdócio de Cristo’ ou, mais brevemente, ‘Sermão sacerdotal’” (A. Vanhoye). Trata-se de um sermão de um autor anônimo dirigido a cristãos do final do primeiro século. É o único texto do NT que fala de Jesus como sacerdote; e o faz distinguindo seu sacerdócio daquele judaico que já se encerrara após a destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C. Jesus é o único e verdadeiro sacerdote e só a doação da sua própria vida perdoou os pecados (10,11-18). Seu status de Filho supera Moisés e os anjos. O sacrifício de Cristo foi feito de uma vez por todas. Só Cristo é o perfeito mediador. Jesus “teve que ser semelhante em tudo a seus irmãos, para se tornar sumo sacerdote misericordioso e fiel em relação às coisas de Deus, a fim de expiar os pecados do povo. De fato, justamente porque foi colocado à prova e porque sofreu pessoalmente, ele é capaz de vir em auxílio daqueles que estão sendo provados.” (2,17-18). A Carta aos Hebreus também é um convite a perseverar na fé, mesmo em meio as perseguições: “não percam agora a coragem, para a qual está reservada uma grande recompensa. Vocês necessitam apenas de perseverança, a fim de cumprirem a vontade de Deus, e assim alcançarem o que ele prometeu” (10,35-36).

Concluímos nossa pequena Introdução à Bíblia justamente com uma reflexão da Carta aos Hebreus. Ela nos recorda que muitos nos precederam na fé e eles são modelos para permanecermos fiéis, apesar das perseguições. O importante é não perder de vista que o foco é Jesus, seu jeito de ser e amar. Devemos sempre olhar toda a Escritura a partir de Jesus e entender que não estudamos a bíblia para ser mais inteligentes ou doutores, mas para que, conhecendo mais a Palavra de Deus, possamos viver sua vontade, nos assemelharmos mais a Jesus, amando como ele amou. “Estamos rodeados dessa grande nuvem de testemunhas. Deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que se agarra em nós. Corramos com perseverança na corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé” (Hb 12,1-2).

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