O Papa  Francisco e a Igreja pobre e para os pobres

Por Ir. Fábio Pereira Feitosa s.v

O ano de 2013 sem dúvidas foi um ano singular para a história da Igreja e para sua eclesiologia, considerando dois fatos que ocorreram naquele ano, estamos nos referindo a renúncia papal de Bento XVI e a escolha do Cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio para ser o novo sucessor de Pedro.

O contexto pós renúncia de Bento XVI, foi marcado pela instauração de um clima de suspense, no qual muitas foram as formulações acerca dos rumos da Igreja a partir daquele momento, que pegou a todos de supressa. Após muita expectativa, na noite do dia 13 de março às 19h:00 do horário local, o mundo conheceu o novo Bispo de Roma, contudo, ninguém imaginava o que estava por vir. 

O Papa Francisco foi o primeiro Papa formado no espírito do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), como observou Passos (2018, p.45): “Francisco é o primeiro papa filho da era conciliar. Os demais papas que vieram depois do grande sínodo, foram formados na fase anterior dento das referências do Vaticano I; viveram, portanto, de alguma forma e com alguma intensidade, as duas fases que compõem a Igreja desde aquele epicentro renovador.” 

Embora o Vaticano II tenha sido um evento global, foi sobretudo na América Latina que as suas diretrizes encontraram solos férteis e desta maneira suscitaram o surgimento de novas formas de eclesialidade, Bergoglio foi formado neste rico contexto histórico, teológico e social no qual a Igreja se mantendo fiel as suas raízes evangélicas e impulsionada pelo Vaticano II buscava constantemente ouvir os clamores do povo e estar junto dele, mesmo quando isso representava algum risco.

Desde os primeiros momentos de seu pontificado, Francisco demonstrou ao mundo que este seria marcado pela simplicidade, pelo diálogo e pelo cuidado com os mais pobres. Em suma, Francisco com seus gestos demonstrava que sob seu pastoreio a Igreja retornaria às suas origens evangélicas e por consequência entraria em uma nova fase de sua evangelização, cujo resultado principal seria o estabelecimento de uma Igreja em saída.

A chegada de Francisco à Cátedra de São Pedro representou um reavivamento do Espírito conciliar, tão arrefecido ao longo dos anos. Por outro lado, despertou a ira daqueles que se colocam contra a renovação da Igreja e a identificam como sendo uma quebra com a sua Tradição.

É possível identificar no pontificado de Francisco diversos fatores que evidenciam o seu comprometimento com a aplicação e a efetivação das diretrizes conciliares, entre os quais podemos destacar: O seu empenho com os mais pobres, com o processo de sinodalidade e com a reforma da Cúria Romana. 

O Papa Francisco, constantemente nos adverte sobre a necessidade de cuidar dos mais pobres e vulneráveis de nossa sociedade, tal preocupação, faz com que autores como Aquino Júnior (2018, p.21) perceba que a centralidade dada por Francisco aos mais pobres em seu pontificado é a característica e o aspecto mais marcante do ministério pastoral de Francisco:

A característica mais importante e mais determinante do ministério pastoral de Francisco como bispo de Roma é sua insistência teológico-pastoral na centralidade dos pobres e marginalizados de todas as pessoas que sofrem na vida e missão da Igreja. Eles estão no coração da Igreja e marcam radical e definitivamente sua identidade e sua missão no mundo. A tal ponto que ela se constitui como “Igreja pobre para os pobres” ou “Igreja em saída para as periferias.

Antes de abordarmos o tema conciliar Igreja dos Pobres, recuperado por Francisco, vamos refletir um pouco acerca da pobreza, para assim percebermos que esta preocupação de Francisco, é na verdade uma preocupação da Igreja e faz parte de sua Tradição, mas que infelizmente muitas vezes é deixada de lado e até mesmo esquecida.

O Tema pobreza já foi largamente estudada e defendida por diferentes autores e santos ao longo da história e a sua vivência foi e continua sendo buscada por diferentes religiões, como observou Gauthier (1967, p.14) que ao refletir sobre este tema, afirmou:  “(…) foi amplamente estudado por religiosos, sacerdotes, bispos, leigos… Isto, aliás, não é exclusivo ao cristianismo: o budismo, o hinduísmo, o islamismo, o judaísmo têm sentido muito vivo da pobreza como virtude, ou melhor, como bem-aventurança”. Embora Gauthier (1967, p.13,14) perceba que a pobreza é vivenciada por diferentes segmentos religiosos, ele nota a existência de diferentes maneiras de vivê-la: 

(…) a pobreza evangélica é bem distinta da budista. Ela não é nem moralista, nem antropocêntrica. É centrada em Jesus (…)

 Jesus quis ser pobre e pregou a pobreza não somente como uma libertação espiritual ou moral, mas como uma condição da Encarnação redentora, como a passagem necessária à Bem-aventurada Ressurreição, como a preparação de sua volta.

Se a pobreza ocupa este lugar no mistério de Cristo, é normal que ela tem lugar também no mistério de Igreja, seu corpo e sua esposa.

Vemos assim a importância que a pobreza evangélica ocupou na vida de Cristo e por consequência deve também ocupar na vida da Igreja, neste sentido muitos foram os membros desta instituição que passaram a defendê-la e vivê-la e desta maneira passaram a denunciar aqueles que de maneira de sádica se aproveitavam dos mais pobres. Muitos autores e santos fizeram de suas vidas um ato de entrega aos mais pobres, somos herdeiros desta tão bonita e necessária tradição. A preocupação do Papa Francisco com os mais pobres está presente em seus pronunciamentos, discursos e escritos nos quais constantemente o vemos falar na chamada Igreja dos Pobres. Aquino Júnior (2018, p.30) nos mostra a origem deste termo:

A expressão “Igreja dos pobres” remonta à mensagem do Papa João XXIII ao mundo no dia 11 de setembro de 1962 – um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II. Falando de Cristo como luz do mundo e da missão da Igreja de irradiar essa luz em um mundo que “enfrenta graves problemas”, o papa diz que a Igreja tem se voltado para esses problemas e que o concílio “poderá chegar a propostas de solução […] com base na dignidade do ser humano e com sua vocação cristã”. (….) E, de modo surpreendente e inesperado, apresenta o que qualifica como “outro pronto luminoso”: “Pensando nos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta e quer ser a Igreja de todos, em particular, a Igreja dos pobres.

Embora a fala de João XXIII acerca da Igreja dos Pobres tenha desempenhando um papel profético, este termo não apareceu nenhuma vez nos documentos conciliares. Contudo, no interior do Concílio por inspiração do Espírito Santo, surgiu um grupo de padres conciliares que estavam atentos aos clamores do povo e começaram ainda na primeira sessão deste concílio a pensar e a se articularem para que a evangelização dos pobres estivesse no centro das discursões conciliares, este grupo ficou conhecido como Grupo da Igreja dos Pobres. O que começou com uma ideia acabou tomando forma e teve ressonâncias nas aulas conciliares, como demonstrou Beozzo (2015, p.12): 

O grupo colaborou com suas reflexões e respaldou a corajosa intervenção do cardeal arcebispo de Bolonha, Giacomo Lercaro, quando se iniciou a discussão sobre o esquema da Igreja nos últimos dias da primeira sessão conciliar. Lercaro interveio na Aula Conciliar no dia 6 de dezembro de 1962. Disse que o Concílio necessitava de um princípio unificador e vivificador, e que esse devia consistir no reconhecimento de que “esta era a hora dos pobres, dos milhões de pobres que se encontram por toda a face da terra, esta é a hora do mistério da Igreja, mãe dos pobres, esta é a hora do Cristo, sobretudo no pobre”. Pedia que a problemática da pobreza fosse assumida como tema central e hegemônico do Concílio. Que não fosse um entre os muitos temas já enunciados, mas sim “o único tema de todo o Vaticano II”.

Vemos assim o quanto o Grupo da Igreja dos Pobres impactou profundamente seus membros, cujos anseios iam ao encontro das reflexões e discursões que ocorriam neste grupo composto por pessoas com histórias distintas e vindas das mais diferentes realidades, contudo, percebiam que a Igreja e o Vaticano II não deveriam fechar os olhos para os sofrimentos dos mais pobres e assim fazer da pobreza tema central deste importante evento que modificou a história do cristianismo. Embora o trabalho do grupo da Igreja dos Pobres tenha sido intenso e produzido diferentes frutos, sobretudo em seus membros, suas contribuições ficaram em grande medida às margens do Vaticano II, como observou Brighenti (2016, p.87):

Por razões diversas, o ideal de João XXIII de uma “Igreja pobre e para os pobres” e as contribuições do trabalho do grupo “Igreja dos Pobres”, em grande medida, ficou à margem do Concílio. Esperava-se que entrasse, pelo menos, na Gaudium et Spes, mas na sua gestão foi difícil e de forma ainda prematura teve de ser promulgada no final da Quarta Sessão, sem que a questão dos pobres fosse estruturante do texto.

Mesmo diante deste quadro, o trabalho e esforços do Grupo da Igreja dos Pobres não desapareceu no com encerramento do Concílio, considerando que ao final da 4ª Sessão, mais precisamente no dia 16 de novembro de 1965, cerca de 42 Bispos de diferentes localidades do mundo, celebraram a Eucaristia nas catacumbas de Santa Domitila e lá estes prelados assinaram um pacto que evidenciou o seu comprometimento efetivo com os mais pobres. 

Após o Vaticano II, a chamada Igreja dos Pobres foi ganhando forma, sobretudo a partir das Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979) e recentemente reanimada pela Conferência de Aparecida (2007). Estas conferências marcaram o processo de recepção e aplicação e reavivamento do Vaticano II na América Latina e marcaram profundamente Francisco, que foi formado e atuou neste ambiente no qual aprendeu a ser próximo dos que sofrem. Vemos assim, as origens do posicionamento profético de Francisco que o faz criticar e denunciar o atual sistema econômico, responsável por excluir aqueles que não podem arcar pelos benefícios da globalização e assim acabam entrando em uma nova categoria a dos sobrantes, categoria esta que tem aumentado consideravelmente nos últimos tempos. Diante deste cenário desolador o Papa Francisco constantemente nos convida a sermos uma Igreja em Saída e abraçarmos o projeto de uma Igreja pobre e para os pobres. 

O comprometimento de Francisco com os mais pobres também foi evidenciado quando no ano de 2017, ele criou o Dia Mundial do Pobres, referindo-se a este dia tão profético para os tempos atuais, o Papa Francisco na Carta Apostólica Misericordia et misera, afirmou:

Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.

A criação do Dia Mundial dos Pobres, mais do que evidenciar a preocupação evangélica do Papa Francisco com os mais vulneráveis de nossa sociedade, é também um profundo convite a assumirmos as mesmas posturas de Jesus e nos identificarmos e estarmos juntos aos nossos irmãos empobrecidos. O Dia Mundial dos Pobres, também objetiva demonstrar ao mundo a importância que a pobreza ocupou no Evangelho e como tal deve também ocupar também em nossas vidas. Este dia deve ser assumido por todos nós como parte integrante da nova evangelização, que busca renovar o rosto da Igreja, fazendo-a testemunha da misericórdia.

Devemos assumir a nossa missão de construtores e anunciadores do Reino e da Boa Nova, desta forma é preciso imitarmos o exemplo de Cristo, que por meio do Mistério da Encarnação se fez homem e habitou entre nós, vivendo em uma realidade concreta, com todos os seus desafios, dissabores e alegrias. Assim como Cristo, devemos nos comprometer com os mais frágeis de nossa sociedade, com homens e mulheres que não são notícias, que não são vistos e nem lembrados. Francisco nos ensina quase que diariamente que não podemos nos fechar, é preciso sair e ir ao encontro daqueles que sofrem.

Referências Bibliográficas 

* Ir. Fábio Pereira Feitosa, sv é Religioso de São Vicente de Paulo. Historiador. Pós-graduado em Educação.

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