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Privatização da fé: riqueza é bênção de Deus?

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Gilvander Moreira

Somente nos anos de 1845 e 1846, na obra A Ideologia Alemã, Karl Marx e Engels analisam o fenômeno religioso como realidade social e histórica produzida materialmente e condicionada pelas relações sociais, “o que significa, é óbvio, que a questão pode ser representada na sua totalidade” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300). Após A Ideologia Alemã, poucas vezes Marx se dedicou a escrever sobre religião. Entretanto, sendo questionado sobre o papel da política na Idade Antiga e da religião na Idade Média – como sendo preponderante, alegavam vários pensadores – no primeiro volume de O Capital, em uma nota de rodapé, Marx demonstra sua interpretação materialista da história. Diz ele: “Nem a Idade Media pode viver do Catolicismo nem a Antiguidade da política. As respectivas condições econômicas explicam, de fato, por que o Catolicismo lá e a política aqui desempenham o papel dominante” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300).

Filho de pai deísta (aquele que acredita em Deus), não sendo religioso, mas definindo-se como ateu, Marx tinha como herói o deus Prometeu, aquele do mito grego que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos seres humanos. Isso foi um ato de rebeldia que lhe rendeu condenação. Marx se interessou pelos filósofos gregos Demócrito e Epicuro. Várias interpretações tacanhas sobre a afirmação ‘religião é ópio do povo’ têm distanciado e gerado uma montanha de preconceitos mútuos entre cristãos e socialistas. Convém recordar que a afirmação de Marx não tem valor ontológico como se Marx quisesse dizer que toda e qualquer religião, independentemente de sua constituição e incidência na história, é intrinsecamente alienadora. Marx jamais quis afirmar isso. Ele teve a coragem de denunciar as religiões históricas que andavam de braços dados com os poderes opressores.

Michael Lowy, no artigo Marxismo e religião: ópio do povo?, faz um resgate histórico imprescindível para a compreensão da sociologia marxista da religião. Diz ele: “Apesar de seu pouco interesse pela religião, Marx prestou atenção na relação entre protestantismo e capitalismo. Diversas passagens de O Capital fazem referência à contribuição do protestantismo para a acumulação primitiva de capital – por exemplo, por meio do estímulo à expropriação de propriedades da Igreja e campos comunais. Nos Grundrisse, formula – meio século antes do famoso ensaio de Max Weber! – o seguinte comentário significativo e revelador sobre a íntima associação entre protestantismo e capitalismo: “O culto do dinheiro tem seu ascetismo, sua auto-abnegação, seu autosacrifício – a economia e a frugalidade, desprezo pelo mundano, prazeres temporários, efêmeros e fugazes; o correr atrás do eterno tesouro. Daqui a conexão entre o Puritanismo inglês ou o Protestantismo holandês e o fazer dinheiro”” (MARX apud LOWY, 2007, p. 301). 

A sintonia entre Marx e Weber neste ponto se verifica. “A semelhança – não a identidade – com a tese do Weber é surpreendente, mais ainda uma vez que o autor da Ética Protestante não pode ter lido esta passagem” (LOWY, 2007, p. 301), já que os Grundrisse de Marx foram publicados pela primeira vez somente no ano de 1940. Não podemos simplesmente importar ideias de fora e nem do passado. Cumpre, por exemplo, ressaltar que no Brasil há uma significativa participação de integrantes de várias igrejas protestantes construindo a Teologia da Libertação e por causa dela estão comprometidos com as lutas por justiça social e, especificamente, com as lutas sociais por terra, moradia, pão, meio ambiente e a superação do capitalismo com todas as discriminações causadas pelo sistema do capital, que é máquina de moer vidas. 

No Brasil, atualmente, a crítica contundente de Marx contra o protestantismo pode ser aplicada, guardadas as devidas e evidentes diferenças, ao (neo)pentecostalismo que campeia no meio das massas via igrejas eletrônicas – igrejas empresas – propagandeando a “teologia” (ideologia) da Prosperidade, que, por sinal, é questionada com ardor no livro de Jó, na Bíblia, segundo interpretação bíblica na linha da Teologia da Libertação. Ao vivenciar uma experiência humana que o sacode visceralmente, Jó descobre que Deus, que é mistério de infinito amor, não o ama enquanto ele é rico, sadio e tem família, mas que mesmo perdendo riqueza, saúde e família, é no reino da gratuidade que o amor de Deus acontece. Deus não nos abandona jamais. Assim, Jó refaz sua experiência de Deus na vida: “Antes eu te conhecia só por ouvir dizer, mas agora meus olhos te veem” (Jó 42,5). 

Ao analisar as implicações da ética protestante no desenvolvimento do capitalismo, Weber afirma que a ascese protestante “teve o efeito [psicológico] de liberar o enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no sentido descrito) como diretamente querido por Deus” (WEBER, 2004, p. 155). Weber analisou ainda que a ética protestante impulsiona a produção de riqueza privadamente como fruto do trabalho e, pior, exorta ao trabalho exaustivo, sem descanso. Weber, assim, tece sua análise sobre a ascese protestante, o ‘espírito’ do capitalismo: “A ascese lutou do lado da produção da riqueza privada […] A obtenção da riqueza como fruto do trabalho em uma profissão, a bênção de Deus. […] Eis, porém, algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como meio ascético simplesmente supremo é a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser no fim das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expressão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de “espírito” do capitalismo” (WEBER, 2004, p. 156-157). 

A classe dominante com política econômica neoliberal que propõe incluir os excluídos pelo consumo e sacerdotes e pastores de igrejas da “teologia” da prosperidade mercantilizada sob um manto religioso nas igrejas (neo)pentecostais estão solapando não só a luta pela terra e pela moradia adequada, mas também a luta por muitos outros direitos sociais, porque veiculam autoajuda e valorização da pessoa individualmente alardeando a “Teologia” da Prosperidade, “um conjunto de crenças e afirmações, surgidas nos Estados Unidos, que afirma ser legítimo ao crente buscar resultados, ter fortuna favorável, enriquecer, obter o favorecimento divino para sua vida material ou simplesmente progredir” (CAMPOS, 1997, p. 363). Dizem que prosperar individualmente, isoladamente, tornando-se rico é bênção de Deus. E, quem mais oferece ofertas e paga religiosamente o dízimo, segundo certos pastores e padres (neo)pentecostais, será mais abençoado e terá crescimento econômico próspero. Buscando um ‘jeitinho brasileiro’, as massas acorrem aos templos (neo)pentecostais – parte deles está no interno da igreja católica também – que encenam curas e alardeiam a realização de milagres no sentido de mágicas que desrespeitam as leis da natureza e da história. O pagamento de dízimo, de ofertas e a compra de CDs, revistas, DVDs e muitos outros ‘penduricalhos’ não são sentidos pelos fiéis – ao ídolo do capital com capa religiosa – como espoliação, mas como caminho para bênçãos pessoais, bênçãos para uns e não para todos, o que revela fé em um deus que discrimina, fé em um ídolo. Assim, nas igrejas pentecostais e nas neopentecostais se privatiza a fé e se usa e abusa do nome de Deus para lucrar e acumular capital sem medidas. Se estivesse vivo fisicamente atualmente no nosso meio, Marx certamente seria implacável contra a exploração do que podemos chamar de capitalismo religioso com religião burguesa. Mas, segundo o método de Marx, temos que afirmar que a intensa febre religiosa como termômetro acusa a superexploração a que a maioria das/os trabalhadoras/es está submetida na fase do capitalismo avançado que transforma a vida no mundo, aqui e agora, em um ‘inferno’. Esfolados no ‘inferno’ do mundo sob os ditames do capital, multidões estão buscando refúgio em igrejas (neo)pentecostais, que são consideradas ‘um pedacinho do céu na terra’ ou um oásis no mundo de violência do capital.

Referências

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio; São Bernardo do Campo: UMESP, 1997.

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007. 

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

08/02/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Celebração da Teologia da Libertação na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15

2 – Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros – 29/7/2020

3 – Teologia Canastreira/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/7ª Parte./05/8/2018

4 – “Os evangélicos farão parte da derrota do Bolsonaro” (Pastor Henrique Vieira). Não ao abuso da fé!

5 – Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

6 – “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

7 – COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

8 – “Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?” – Para o Mês da Bíblia/2021 – Frei Gilvander -13/8/2021

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