A espiritualidade libertadora é pensada como profunda comunhão com tudo e todes. Como já dissemos aqui mesmo nesta coluna, é a grande motivação que vai penetrando nossa vida e, com isso, criamos projetos e compromissos. Não como uma razão proveniente da lógica, mas como algo que nos integra profundamente, como uma mística.
Com certeza, ainda caminhamos por estruturas de pensamento, de visão de mundo e, portanto, de relações, que não conduzem a essa integração profunda. Ao contrário. Muitas e muitas vezes ainda nos surpreendemos com discursos dualistas, com fragmentações na compreensão das tradições religiosas, até mesmo nas práticas litúrgicas e pastorais. É assim mesmo. Estamos vivendo um processo de revisão de crenças e enraizamentos culturais que nos afastaram das fontes da espiritualidade integral.
Propomos aqui, mais um pequeno passo fundamental nesse caminho. Não se trata de passos fáceis de dar, pois nos pedem revisão, reavaliação, diálogos conosco mesmos e com nossos pares, a fim de buscarmos escolhas que nos ajudem a dar real significado às nossas vidas em comunhão.
Uma primeira reflexão é pensarmos na espiritualidade integral não como uma alternativa, mas como a própria forma de ser e estar no mundo. É ser na relação, é ser com todos os seres, com todo o cosmos, com o passado, o presente e o futuro, com a terra e toda a sua ancestralidade e memória fecunda. É vivencial, uma experiência de enraizamento a partir do chão onde estamos, mas também a partir da história e da mística que nos trouxe até aqui.
Como experiência, vamos nos dando conta que na espiritualidade tudo está interligado, se comunica, se relaciona. Alguns grupos chamam essa experiência de sentir-pensar, porque não é dualista, é integradora. O pensamento informa o sentimento, o sentimento dialoga com o pensamento, provocando um processo contínuo de criação e novas descobertas.
É verdade, fomos apartados dessa integração, e uma das formas de nos reaproximarmos é dialogar profundamente com quem nunca se separou – com as comunidades indígenas, com as comunidades quilombolas, com os povos originários.
Convidamos a uma experiência de meditação. Fechemos os outros e vamos a um desses espaços fecundos e integradores. Pode ser em uma comunidade quilombola, em uma comunidade originária. Olhe em volta, veja onde está sua casa, e veja as demais casas. Sua casa é a casa de todos, assim é cada casa. É uma aldeia, onde crianças, anciãos, jovens, adultos, plantas, animais, terra, pedras, água, seres espirituais, tudo é pura convivência e comunhão. Neste recanto, os dias são preciosos e você pode caminhar, tocar nas plantas, acompanhar os animais e contemplar tudo em volta em plena harmonia.
Este é o paradigma no qual a espiritualidade integral é vida e não proposta. É um horizonte, uma relação que configura um modo de viver. Pode ser entendida como uma ação de viver em harmonia e reciprocidade com todos os seres, com as forças espirituais, com a natureza em suas manifestações e consigo mesmo como ser comunitário. Resulta em reverenciar as forças naturais que regem todo o universo, sem dividi-las ou classificá-las de forma hierárquica. Dessa forma, todas as relações são uma grande composição, uma única melodia, sejam as pessoas, as plantas, o mundo físico, o mundo espiritual, o tempo e o espaço. Tudo é parte de um todo que é dinâmico e comunitário.
Neste dinamismo, de profunda inter-relação entre tudo, as ações litúrgicas também estão presentes. Elas são pontos de conexão entre mundos, de abertura e comunicação espiritual, de nutrição, de revisão de vidas e práticas. Sim, em cada uma das expressões religiosas dos povos originários, vamos encontrar ritos, danças, canções, silêncios, expressões, contemplação, pausas. As liturgias são pontos de congregação e de retorno, de concentração e alimento.
Nessas vivências, a espiritualidade é integradora, é um princípio que dinamiza a vida. Como princípio orientador, cada escolha, cada gesto, as relações, as decisões, passam por uma consulta profunda, que se desdobra em atitudes. É uma espiritualidade envolvente, e, por isso mesmo, não há dentro e fora e sim conexão e interdependência. Na linguagem teológica judaico-cristã, é a imanência e a transcendência em integração plena, em um diálogo simétrico e incessante.
Poderíamos pensar. Onde será que nos separamos? Em que ponto? Vamos encontrar muitas causas. Na verdade, o dualismo moderno tomou conta de todos os contextos, e fomos separando a cabeça e o coração, o pessoal e o coletivo, o ser humano e a natureza, a religião e a vida prática. Mas, se olharmos para as origens do Cristianismo, vamos nos encontrar com a profunda comunhão-conexão de Jesus com todas essas dimensões. Ou seja, o resgate a partir das comunidades originárias, é também o resgate da própria fonte do Cristianismo.
A comunhão é um princípio originário, ou seja, está na origem de nossas vidas, de nosso estar no mundo, em nossas raízes. Por isso mesmo, podemos resgatar, podemos despertá-lo de seu sono moderno e racional, e assim ele volta a ganhar vida em nossos corpos, em nossas vidas, em nossas formas de estar no mundo. Nosso processo civilizacional nos separou dessa potência, não apenas de forma metafórica colocou cimento sobre o chão sagrado, mas ele está aqui, sob nossos pés e, se nos deixamos enraizar, encontraremos novamente a seiva que nutrirá um novo estado de ser e de viver.
“É preciso dançar e cantar para suspender o céu,
para que as mudanças referentes à saúde da Terra
e de todos os seres aconteçam nessa passagem.
Quando fazemos o taru andé, esse ritual,
é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência”
KRENAK, Ailton
A vida não é útil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 46.