Este colunista, sempre que pode, evita temas por demais conjunturais. No entanto, assim como no caso “Lázaro”, mais uma vez a indignação falou mais alto.
Os assassinatos de Moïse e Durval por si mesmos produzem grande indignação. Mas a reflexão vai por outro caminho: a reação de “pessoas de bem” é o tema. Fui estimulado por um papo de Facebook e pela reflexão do amigo Edward Guimarães. Edward expressava a dificuldade com parentes e amigos que procuram justificativas para relativizar o mal. E no papo do Face foi a mesma coisa.
É conhecida a expressão “sair do armário” para casos homoafetivos. A crise civilizatória dos últimos anos proporcionou outro tipo de saída: há pessoas que se sentem autorizadas a justificar ódio, preconceito, discriminação, como “liberdade de expressão”. Pessoas que estão dispostas a mentir (fake news) para defender o que acreditam ser certo, o fim justificando os meios. E por mais que sejam desmentidas, continuam no mesmo lugar.
E não se trata de fazer a apologia de uma intelectualidade de elite. Conheci e conheço muitas pessoas semianalfabetas de grande sabedoria. Diploma não confere sabedoria, bom senso, senso crítico, capacidade de verificar por trás das palavras e sempre perguntar. Fazer perguntas boas é o início de qualquer processo de conhecimento.
O que tem levado parcela de nossa sociedade a tratar vítimas como merecedoras da agressão por elas sofridas? A coluna não dará conta de uma resposta, mas expressa a indignação de um sujeito que tenta seguir o caminho de uma das grandes vítimas da história: Jesus de Nazaré. Aí pode vir um “desorientado” e afirmar: “Jesus não vale”. Vale São Pedro e São Paulo? Um foi crucificado de cabeça para baixo, o outro perdeu a cabeça pela espada. Vale as mulheres queimadas como bruxas porque eram mais inteligentes que os homens no poder? Vale os negros viajando em navios insalubres, amarrados a ferro e comendo lavagem? Vale a moça que usava minissaia e um machão a estupra afirmando que foi ela que provocou? Vale uma menina vendida por uma família na miséria para atender aos caprichos de poderosos pedófilos? Enfim, vale Moïse e Durval?
Pois é, Moïse, segundo a versão dos agressores, estava bêbado, provocando arruaça. Então, como se corrige um arruaceiro: tortura e morte? Chamar a polícia? Prender? Levar à delegacia para esclarecimentos? Não, “vagabundo” não tem jeito. Então, se julga e se condena imediatamente. Não existe “vagabundo” inocente. Inocentes são as “pessoas de bem”: não são corruptas, jamais promovem arruaças, se alguém expressar pensamento diferente ela tem paciência, tenta argumentar com profundidade para que o/a outro/a pense, não é? (Por favor, parágrafo completamente irônico).
E o Durval? Ah, o sargento é um especialista. Sabe diferenciar um bandido de uma “pessoa de bem”. Aquele negro mexendo na bolsa só pode ser bandido. Deu um tiro certeiro. O “bandido” caiu e levantou mão. Deu um segundo tiro. Aproximou-se e deu um terceiro tiro e aí, agora em absoluta segurança, pergunta: “Você está armado?”. Bom o especialista errou, mas, se estivesse certo, teria evitado um assalto. Tá vendo como é bom a população ter armas! (Mais ironia)
Para fechar, o mais difícil para os “desorientados”: foi racismo. Pera aí. Tá bom, foram crimes terríveis, mas racismo é demais. Para de “mimimi”. O sargento é branco, mas é um especialista que agiu dentro do protocolo. E, no caso do congolês, tinha até negros entre os agressores. No Brasil não tem racismo: “tenho até um amigo negro” Até? Quando um branco faz uma barbaridade nunca vi ninguém falando: “tenho até um amigo branco”. (Ironia de novo)
Eu sei, “racismo estrutural” é um conceito difícil. Difícil entender que existe uma estrutura que legitima o racismo e que pode atingir inclusive pessoas não brancas. Mas certamente se Moïse fosse um branco polonês (nada contras os poloneses, por favor – agora é assim, tem que explicar tudo) teria grande chance de estar vivo. E o Durval também. Se fosse um branco mexendo na bolsa, teria grande chance de estar vivo, pois afinal, a maioria dos “vagabundos” é negra, né? (Última ironia)
Conclusão: antes de condenar o agressor, avalie a vítima, ela pode ser culpada. Desculpe, não resisti a mais uma ironia.