Estamos caminhando com uma pequena série de artigos orientados a pensarmos juntos sobre a Mistagogia como mística, como caminho pastoral-pedagógico, como eixo referencial, como acompanhamento pessoal e comunitário, como relação.
Nesta reflexão, vamos abraçar mais de perto o tema da comunidade como caminho e também como espaço privilegiado para a experiência mistagógica.
Muitas vezes, pensamos na mistagogia como uma relação interpessoal entre mestre e discípulo; mas, aprofundando esta relação, já compreendemos que esses lugares são dinâmicos, ou seja, são dialéticos: todo mestre é também discípulo, aprendiz. A dimensão mistagógica nos coloca diante do movimento constante que instaura novas perguntas, novas escolhas, novas ideias, novas possibilidades de existir em busca da harmonia com o Mistério que nos orienta e dá sentido.
É neste dinamismo que as comunidades da Igreja primitiva, entre os séculos III e IV, identificam essa relação em muitas dimensões, pois a experiência mistagógica é uma experiência dialógica entre Deus e o ser humano, é experiência litúrgico-sacramental, é experiência comunitária.
Estamos cientes de que cada comunidade possui um contexto muito próprio e experimenta renovação e novas experiências, mas também crises e avaliações constantes, sempre em busca da identidade que a constitui. Nestas propostas e reavaliações, o chamado mais profundo – que vem do próprio processo mistagógico -, é a fidelidade à fonte originária, ao Mistério revelado e, a criatividade para dialogar com cada tempo, cada contexto, cada situação que se apresenta na história.
Processos que apresentam descobertas, novos conhecimentos e também redescobertas e resgate de princípios e práticas de sentido que orientem a integração entre a fé e a vida. Para responder a estas orientações, as comunidades vêm se perguntando mais pelo ‘como fazer’ do que pelo ‘por quê fazer’, ou seja, o que está no centro dos planejamentos é muitas vezes de ordem metodológica e não a compreensão do que fundamenta e dá sentido à comunidade.
Aqui desejamos chamar atenção para uma questão bem frequente: podemos facilmente elencar várias práticas, ritos, espaços para um resgate de ordem metodológica sem, contudo, atingir ao cerne da identidade da comunidade. Não será a instrução doutrinária nem mesmo a sequência de ritos ou práticas pastorais que oportunizarão este resgate. Em primeiro lugar, a comunidade precisa retomar sua identidade, ou seja, voltar aos seus fundamentos, à fonte que a orienta e conduz – o próprio Mistério de Deus que se revela incessantemente em todas as dimensões (pessoais, comunitárias, sociais, ambientais, históricas e metahistóricas).
De onde viemos? Quem somos? Quem nos orienta? Quais as nossas fontes e fundamentos? E essas perguntas não são respondidas intelectualmente, mas na experiência litúrgica, comunitária, sacramental, orante. São conduzidas pelo Mistério e só desta experiência brotarão os caminhos propostos.
Sendo assim, é fundamental que a comunidade local esteja muito atenta ao seu próprio processo, aberta ao diálogo interno e profundo, se colocando sempre diante do Mistério como seu princípio, fundamento e orientação constante. Ou seja, que a comunidade se reconheça e viva em estado de iniciação, em estado catecumenal, em processo mistagógico constante, dinâmico, inacabado. É uma comunidade a caminho, viva, fecunda, aberta. Essa é sua raiz e própria razão de ser.
Cada pessoa participa desta dinâmica, mas também toda a comunidade. É um diálogo interno, fecundo em sua circularidade hermenêutica. Buscam elaborar juntas suas experiências pessoais e sociais, na escuta profunda do Mistério que se revela nos textos sagrados, na liturgia interna e na liturgia presente na vida ordinária e cotidiana. Para que este dinamismo esteja vivo, a comunidade deve sempre garantir o espaço de encontro, de rodas de conversas, de reflexões e revisões pessoais e coletivas. Cada experiência é lugar teológico, é espaço fecundo de Revelação e contribui para todo o processo interpretativo e caminho comunitário.
A comunidade em estado mistagógico é espaço de acolhida, mas também de elaboração das fontes originárias de cada experiência religiosa. Para o Cristianismo, o texto sagrado, as experiências da tradição e dos intérpretes, as trocas entre as comunidades de fé. Para cada tradição religiosa, poderemos perceber quais os caminhos que possibilitam esse diálogo entre fidelidade e a criatividade, mantendo sempre a abertura e o diálogo com o mistério de Deus, que se revela na vida pessoal e histórica, superando uma concepção centrada na simples assimilação de gestos e conteúdos.
Portanto, não é um movimento que se dá de uma vez ou dentro de um tempo determinado. É constante – interpelando e convocando ao dinamismo próprio do Mistério que transborda, arrebanha, arrebate e re-lança. Sim. Pede não apenas a abertura ao dinamismo divino, mas também à comunhão comunitária. Pede acolhimento e reconhecimento da vocação comum a todo ser humano, aos carismas, serviços, ministérios presentes em sua diversidade e pluralidade.
Em uma tentativa de conclusão dessa identidade dinâmica, podemos dizer que o Mistério que se revela na comunidade, a enraíza e convoca, é também Mistério que transborda onde cada membra/membro estiver, como testemunho fecundo por onde passar. A comunidade mistagógica é, assim, mistagoga no mundo. Sua trajetória se expande em um campo de missão que renova a história por onde passar.
A comunidade em estado mistagógico é sabedoria, é experiência místico-sapiencial que reverbera por onde passa, e cada pessoa que dela participa opera nessa vibração. Alarga conhecimento, provoca experiências e revisões, atravessa fronteiras e encontra brechas nas quais o Mistério divino opera e cria novos mundos amorosos. Nunca de forma mágica, mas com dialogias próprias da diversidade e de sua fecundidade, movimenta as espiritualidades em processos de intersecção, comunicação e comunhão.
Sentiram a potência da mistagogia vivida na comunidade?
Até a infinitude do olhar, do ouvir,
Nas mãos em algum jardim,
Da gente da terra enfim
Crescer, buscar, até chegar a Deus
Pra amar essa terra e os seus.
Djavan