Concluímos no último domingo de outubro o processo eleitoral mais acirrado, mais difícil e mais importante desde o início da redemocratização do país em 1985. Não era uma disputa entre direita e esquerda. Nem muito menos uma disputa entre dois extremos. Era uma disputa entre a extrema direita neoliberal, reacionária e antidemocrática (representada por Bolsonaro) e setores democráticos de esquerda, de centro e até de direita (representados por Lula). Estava em jogo não apenas projetos políticos mais à esquerda ou à direita, mas a própria democracia, enquanto regime político: sua constituição, suas instituições, seu processo eleitoral.
A vitória de Lula representa uma vitória importante da (jovem, frágil, limitada e ambígua) democracia brasileira sobre as forças reacionárias e autoritárias que governaram o país nos últimos anos. Mas nem de longe significa o fim da extrema direita reacionária e autoritária nem a garantia de um estado social e democrático: seja pela mobilização e força de setores sociais reacionários e autoritários pelo país afora; seja pela força política desses setores na câmara e no senado; seja pela própria composição política do governo Lula. Os desafios são imensos e devem ser enfrentados pelo governo e pela sociedade.
Da parte do governo, há desafios econômicos e políticos enormes:
Antes de tudo, o enfrentamento da fome e da miséria que são a chaga e o desafio maior da sociedade: mais de 33 milhões de pessoas passando fome e mais da metade da população em situação de insegurança alimentar. Isso exige a garantia imediata de recursos para o Programa Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e uma série de programas sociais que repercutem diretamente na vida do povo pobre como farmácia popular, merenda escolar e saúde indígena. Exige também uma retomada do investimento público em áreas de infraestrutura, saneamento básico e habitação que garanta serviços básicos à população, promova geração rápida de emprego e movimente a economia local. E exige uma profunda reforma da política fiscal do país, começando pela revogação do teto de gastos na área social e culminando numa reforma tributária progressiva, onde quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos.
Mas há também desafios político-institucionais enormes: É preciso enfrentar o esquema imoral de privatização e fatiamento do orçamento da união que vai das medidas parlamentares (legal, mas imoral) ao orçamento secreto (imoral e ilegal). É preciso desmilitarizar o Estado, tanto em relação ao número de militares em órgãos públicos, quanto, sobretudo, no que se refere à lógica militar de guerra e destruição do inimigo que se impôs com o atual governo. E é preciso fazer tudo isso com a câmara e o senado que temos. Portanto, com ousadia e realismo. Um pragmatismo excessivo tornaria o governo refém do centrão. Um idealismo excessivo inviabilizaria o governo.
Da parte da sociedade, os desafios não são menores. O atual governo não só alimentou e promoveu, mas deu visibilidade e proteção institucional a um movimento difuso formado por diversas forças sociais reacionárias e autoritárias. Mesmo sem o aparato institucional do Estado, esse movimento continua forte na sociedade, disseminando ódio, preconceito, intolerância, fake news e violência. Seu enfrentamento passa pela defesa incondicional dos direitos humanos, das florestas e dos povos das florestas, pela luta por políticas públicas que garantam direitos sociais fundamentais, pelo cultivo e difusão de uma cultura do encontro, do diálogo e da cooperação.
Por fim, as tradições religiosas em geral, mas de modo muito particular as igrejas cristãs, cuja fé foi tão manipulada, instrumentalizada e pervertida nessas eleições, têm um desafio e uma tarefa fundamentais: libertar as igrejas dos falsos pastores que manipulam o sentimento e o imaginário religioso do povo; mostrar que a fé não promove preconceito, intolerância e violência, mas é fonte de justiça, de fraternidade e de paz; cultivar e difundir uma cultura de diálogo, respeito e cooperação; promover o bem comum, colaborando com as lutas pelos direitos dos pobres e marginalizados e pelo cuidado da casa comum.
A (re)construção do Brasil é tarefa de todos/as e deve começar pela garantia dos direitos dos pobres e marginalizados que são o critério e a medida da justiça social, da verdadeira democracia e da adesão ou rejeição a Jesus Cristo e seu Evangelho.