No Jornal O Popular (Goiânia – GO) do dia 30 e 31 de outubro passado, na página 14, sobre a VIDA URBANA, lemos a seguinte manchete: “Furto famélico está em 20% das prisões”.
Mariana Carneiro – autora da reportagem – começa o seu texto com estas palavras: “Uma a cada cinco prisões em flagrante por furto, em Goiânia, nos dias úteis de julho a 26 de outubro deste ano, foi por furto famélico, quando a pessoa comete o delito para se alimentar”.
A jornalista, de um lado, relata que Gilles Gomes, advogado criminalista, “durante inspeções em presídios já conheceu pessoas que estavam presas por terem cometidos furtos famélicos”; de outro lado, relata que “desde 2004, existe um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que casos com esse perfil devem ser arquivados, segundo o princípio da insignificância, casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Entretanto, a norma não é obrigatória”.
Na reportagem, Leonardo Stutz, defensor público da área criminal, afirma que “a situação reflete o cenário de pobreza estrema que muitos brasileiros enfrentam”: situação que – acrescento eu – é fruto de um sistema hipócrita e perverso, estruturalmente antiético (ou seja, desumano) que é o sistema capitalista ultraneoliberal.
Mesmo reconhecendo a gravidade da situação, a respeito dos chamados “furtos famélicos”, os juízes – com poucas exceções – não estão preocupados em salvaguardar o direito à alimentação das pessoas que se encontram em extrema necessidade. A preocupação deles é que o “furto” não cause prejuízo à vítima do “crime”.
Infelizmente, nesses casos, as decisões dos juízes são quase sempre muito ambíguas e – na maioria das vezes – descaradamente a favor dos poderosos. Também, dá para entender! Vejam só!
“Em Goiás (nos outros Estados não deve ser muito diferente), 170 juízes (do TJ) receberam mais de R$ 100 mil em outubro” (deste ano), incluindo os adicionais, chamados “penduricalhos”. No mesmo mês, “o maior rendimento bruto foi de R$ 162 mil. Neste caso, o magistrado recebeu subsídio de R$ 35,4 mil e R$ 5 mil em direitos pessoais (abono permanência)” (https://opopular.com.br/noticias/politica/em-goi%C3%A1s-170 ju%C3%ADzes-receberam-mais-de-r-100-mil-em-outubro-1.2348767). Como podemos acreditar na justiça desses juízes?
Mesmo que os pobres e, sobretudo, os mais pobres entre os pobres -que, por extrema necessidade, praticaram “furtos famélicos” – não cheguem a ser presos ou fiquem presos por pouco tempo por serem os casos arquivados, seguindo o princípio da insignificância, eles e elas são sempre humilhados com maus-tratos e palavras desrespeitosas, como: “furtam bolacha, leite, macarrão”, “furtam alimentos vencidos”, “presos por cometerem furtos famélicos”, “presos em fragrante furto”, “cometem delito para se alimentar”, “praticam uma conduta ilícita”, etc.
Segundo o ensinamento ético (o ético é o humano) de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) – que integra o Pensamento Social Cristão – quando uma pessoa ou um grupo de pessoas encontra-se em situação de miséria ou de extrema necessidade, “tudo é comum” ou seja, “todos os bens são de todos e de todas“ (“In casu extremae necessitatis, omnia sunt communia”: Suma Teológica. IIa IIae, questão 32, artigo 7, resposta 3).
Portanto, do ponto de vista ético – humano e cristão (radicalmente humano) – o chamado “furto famélico” não é “furto”, não é “crime”, não é “delito”, não é “conduta ilícita”, mas é “direito famélico”, “direito à alimentação”, que é um direito fundamental de toda pessoa humana e é parte integrante do direito à vida.
Lutemos por esse direito e por um novo modelo de sociedade: justo, igualitário, de irmãos e irmãs.
(Todos os destaques em negrito – menos a manchete da reportagem – são meus)
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 05 de novembro de 2021