É hora de ter coragem

O Brasil é um país profundamente marcado pela presença do Cristianismo ao longo de sua história. Para o bem ou para mal, a fé cristã impacta a vida social brasileira até hoje.

Como religião de conquistadores, presença da Igreja Católica fez murchar a flor dos povos tradicionais em nome de um modelo de evangelização que simplesmente ignorava a alteridade. Debateu-se por séculos se africanos possuíam ou não alma e se infantilizou os povos originários da América.

Aliada ao poder dos reis de Portugal, a Igreja Católica usou a espada da ortodoxia cristã através da inquisição. Em nome de uma Igreja que se via ameaçada com os ventos da Reforma Protestante na Europa, se batizou milhares de pessoas escravizadas que sequer sabiam onde estavam e o que significava aquele ritual.

Como os processos históricos não são lineares e as instituições são contraditórias – talvez porque a contradição seja uma marca indelével da condição humana –, em nome da fé cristã, muitos se colocaram na defesa intransigente dos oprimidos pelo empreendimento colonial imposto pelos europeus em nossa terra.

Da experiência missionária nos Sete Povos das Missões, passando por José de Anchieta e pelos sermões do Padre Antônio Vieira, não foram poucos os que apontaram os horrores da escravidão e das injustiças dos colonizadores. No século XIX, encontramos o idealismo de Frei Caneca e a liderança popular religiosa dos beatos nordestinos.

O Beato José Lourenço, o Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro foram consolo e sinal de esperança para os esquecidos de uma terra e de um tempo onde o cristianismo oficial era aliado dos poderosos. Estes, por sua vez, só viam em sua gente humilde mão de obra barata e massa de manobra.

Nos primórdios da República, reagiram contra os que queriam impedir que vivesse de acordo com a fé do Evangelho. Canudos e o Contestado foram reações dos pobres contra os donos do poder que os desprezavam.

No começo do século XX, em um país que buscava se modernizar sem promover a vida de seu povo, parte dos que se engajaram inicialmente na defesa da fé passaram se mobilizar pela promoção humana. Depois perceberam que isso era insuficiente sem que se buscasse transformar as injustas estruturas que perpetuavam a miséria.

Foi o percurso que fizeram os pioneiros da Ação Católica e os que viveram os primeiros ventos da primavera eclesial que representou o Concílio Vaticano II. Contudo, não faltou quem visse como heresia e pecado este esforço de tornar a Igreja mais relevante em uma sociedade na qual a religião cada vez tinha menos espaço.

Quando alguns cristãos começaram a questionar politicamente as injustiças do Brasil, outros apoiaram a manutenção da velha aliança entre poder religioso e poder político. Quase setenta anos atrás a história relata como as marchas por Deus e pela Família, e como a defesa dos interesses da instituição religiosa legitimaram o arbítrio e a violência do Estado.

Muitos cristãos preferiram abraçar o autoritarismo da ditadura em nome de uma suposta defesa da Igreja. Porém, não faltaram aqueles que, provocados pelos sinais dos tempos e impulsionados pela mensagem de aggionarmento (atualização) do Papa João XXIII, não se omitiram e lutaram contra a opressão do regime.

Estes profetas da verdade entenderam que o Evangelho de Cristo e o Reino de Deus não podem ser engaiolados por uma única confissão cristã. E perceberam que, juntos, os cristãos eram mais fortes na defesa da justiça e na luta contra a opressão. Afinal aquilo que nos une é muito maior que as nossas diferenças.

Em nome do Evangelho colocaram em risco suas próprias vidas, saíram do conforto dos conventos e das sacristias e se lançaram na organização popular. Muitos, como Frei Tito de Alencar, se imolaram tal qual Jesus em nome do sonho do Reino de Deus.

A essa geração primeira se sucederam muitos outros que entenderam ser necessário e urgente um novo jeito de ser Igreja. Não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. Se hoje as comunidades estão por aí animando a caminhada da Igreja em todo o país e se eu posso escrever para um Portal das CEBs, agradeçamos a tantas e tantos que nos precederam na fé. Somos tributários e devedores do profetismo dessas pessoas.

Porém, essa Igreja que nascia do povo foi silenciada pelos ventos da restauração vindos de Roma. E, junto com os guardiões da Igreja, vieram a urbanização desordenada e em larga escala, a expansão das periferias nas grandes cidades.

A alternativa adotada para evitar o esvaziamento das cada vez mais engessadas paróquias deu visibilidade na mídia, projetou sacerdotes, instaurou um movimento de padres cantores, penetrou na mídia. Mas não estancou a sangria dos fiéis.

Ao mesmo tempo, algo acontecia nas periferias mais esquecidas ou às margens dos grandes (e cada vez mais vazios) templos nas zonas centrais das megacidades. Quem oferecia apoio e dava sentido para aquela gente oprimida entre a miséria e a violência eram pastores e missionários evangélicos.

Por isso cresceu o pentecostalismo. Sua pregação dinâmica que apresentava soluções práticas para as pessoas tomou conta das regiões mais pobres das zonas urbanas em todo país. O catolicismo tinha seu próprio pentecostalismo, mas este mais falou aos convertidos e as missas continuaram esvaziadas.

Dessa forma, na virada do século muitos cristãos estavam pensando mais nas estatísticas religiosas do que na fidelidade ao Evangelho. Muitas Igrejas agiam em nome de sua própria manutenção. Estar ao lado das lutas populares deixou de ser prioridade.

O deserto eclesial que se produziu foi terreno fértil para a disseminação de um dos grandes males do século XXI: o fundamentalismo religioso. Na incapacidade de entender as mudanças de época pela quais estamos passando, preferiu-se combater as próprias mudanças.

Os que apelam ao Evangelho, aos valores do Reino ou mesmo ao magistério recente da Igreja são tidos como hereges, inimigos da fé. Nem o Papa escapa dos inquisidores medievais fora de época.

Os cristãos fundamentalistas foram além de suas igrejas, se aliaram com outros intolerantes, conquistaram corações e mentes. E hoje fazem parte das estruturas de poder vigentes em meio à maior tragédia de nossa história: a Pandemia de Covid-19.

Hoje, em meio a mais de 500 mil mortos, diante de uma economia em frangalhos, com as famílias mais pobres em total abandono, o que nós cristãos devemos fazer? Vamos continuar ocupados com nossas liturgias e nossos afazeres, enquanto o país que amamos e a Igreja de que fazemos parte sucumbe aos intolerantes?

Nossa geração vive um momento crucial da história do Brasil. Iremos nos acovardar no conforto das sacristias, dos centros de pastoral ou no anonimato das redes sociais? Ou iremos seguir o exemplo profético daqueles que nos antecederam em outros períodos críticos da sociedade brasileira?

Deixaremos o contratestemunho dos fundamentalistas ser a grande expressão pública do Cristianismo neste começo de século XXI? Mais que uma frase de efeito, já passou da hora em que devemos torrnar uma Igreja em saída realidade concreta no meio do Povo de Deus. É hora de ter coragem!

 

 

 

 

Sair da versão mobile