ColunistasPadre Francisco Aquino Júnior

Eleições e perversão religiosa

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Não se pode negar a importância decisiva do religioso nas eleições de 2022. Nunca se apelou tanto para “deus” e para a “fé” para defender e para atacar candidatos e projetos políticos como nessas eleições. Nunca se manipulou tanto as convicções e os símbolos religiosos em função de interesses políticos como nessas eleições. A “guerra política” se transformou numa espécie de “guerra religiosa”.

O fato da imensa maioria do nosso povo ser religiosa (diferentes igrejas, diferentes religiões, espiritualidades sem vínculo institucional) explica, em boa medida, a importância e o peso do religioso nessas eleições. As tradições religiosas são fonte de valores, de sentido, de convicções e de orientações práticas. E são um dos principais referenciais teóricos e práticos na vida de grande parte do nosso povo. Por isso, em princípio, é normal que o religioso interfira nos rumos e nos processos políticos da sociedade. Assim como outros setores da sociedade têm o direito de intervir nos debates e rumos políticos a partir de seus referenciais e de suas convicções, as pessoas religiosas têm o direito de intervir na sociedade a partir de seus referenciais e de suas convicções religiosas. Mas, assim como todos os setores têm o direito de intervir nos processos sociais a partir de seus referenciais e de suas convicções, têm também o dever de respeitar as convicções e opções dos outros e buscar caminhos de organização da sociedade que respeitem essa diversidade de convicções e opções.

O problema não está na importância do religioso nos debates e rumos políticos da sociedade, mas em sua manipulação em função de interesses e grupos que atentam contra o bem comum e pervertem as próprias tradições religiosas no que têm de mais precioso.

Como bem recorda e adverte o papa Francisco em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social, “o culto sincero a Deus ‘não leva à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela dignidade e pela liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos’” (FT 283); “as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Essas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens da religião que abusaram […] da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens […]. Com efeito, Deus, o Todo-Poderoso, não precisa ser defendido por ninguém e não quer que o seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas” (FT 285); “a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosos fundamentais, mas nas suas deformações” (FT 282).

E é precisamente isso que tem acontecido nessas eleições: manipulação, instrumentalização, deformação e perversão do cristianismo em função de interesses e projetos políticos que, com verniz religioso (“deus acima de todos”), atenta contra o Evangelho de Jesus Cristo que é o Evangelho da fraternidade, da justiça e da paz e que tem como critério e medida os caídos à beira do caminho (Lc 10, 25-37), os pobres e marginalizados (Mt 25, 31-46). Chama atenção o fato de candidatos e grupos que se apresentam como cristãos, falam sempre em deus e apelam para linguagens e símbolos religiosos, defenderem tortura e torturadores, gritarem aos quatro cantos que “bandido bom é bandido morto”, terem aversão a direitos humanos, disseminarem preconceito e ódio contra pobres, mulheres, negros, homossexuais e nordestinos, promoverem o desmonte das políticas sociais que atendem a maioria do povo, promoverem a destruição da floresta amazônica, patrocinarem o armamento da população, atentarem contra as instituições da sociedade e o processo eleitoral. Tudo isso mostra que o “deus” e a “fé” que justificam esses projetos não são o Deus de Jesus Cristo nem é a fé cristã.

A fé cristã nos compromete com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Isso significa buscar o bem comum (e não os interesses de uma pequena elite), lutar pela justiça social (direitos dos pobres e marginalizados) e cuidar da casa comum (preservação das florestas e dos povos das florestas). Essa é a contribuição do cristianismo para a organização política da sociedade e para o debate e as escolhas no processo eleitoral. O contrário disso é manipulação e perversão do cristianismo.

“Cuidado com os falsos profetas: Eles vêm até vós em pele de ovelhas, mas por dentro são lobos ferrosos. Pelos frutos os conhecereis” (Mt 7, 15s).

Artigos relacionados

Deixe um comentário

Verifique também
Close
Back to top button