A relação entre fé e política se tornou um dos temas mais importantes e mais polêmicos nas igrejas e na sociedade. É verdade que muita gente acha que fé não tem nada a ver com política. Mas isso, além de tornar a fé inoperante no mundo político, acaba servindo para justificar opções políticas contrárias à fé.
É bom lembrar que as pessoas que professam uma fé religiosa (crentes) são membros de uma comunidade política e tomam posição a favor ou contra determinados interesses e projetos políticos (cidadãos). Basta ver como as “pessoas religiosas” tomam posição/partido sobre o que acontece na sociedade. E não se pode negar a importância decisiva do religioso (convicções religiosas, grupos religiosos, líderes religiosos) nas disputas políticas no Brasil nos últimos tempos. Cada vez mais se apela ao religioso para atacar e defender interesses, projetos e grupos políticos. Daí a importância e necessidade de pensar sobre a relação entre fé e política.
O Concílio Vaticano II, falando da função da Igreja na sociedade, afirma que a missão que Cristo confiou à Igreja é de “ordem religiosa”, recordando, porém, que “desta mesma missão religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que podem servir para o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a lei divina” (GS 42). Duas coisas muito importantes:
1) A missão da Igreja é de “ordem religiosa” e consiste em ser “sinal e instrumento” da salvação ou do reinado de Deus no mundo. A Igreja não é um partido político que tem a tarefa de elaborar projeto político, lançar candidatos, disputar eleição e governar o país. Isso é tarefa/missão dos partidos e não da Igreja.
2) Mas dessa missão religiosa decorrem “encargos, luzes e forças” para a organização da sociedade de acordo com a vontade de Deus. Por isso, a Igreja não pode ser indiferente à política. Sua missão não se reduz à política, mas tem uma dimensão política que diz respeito ao bem comum, à justiça social e ao cuidado da casa comum.
Isso é muito importante para evitar o “divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana” dos crentes e das Igrejas (GS 43): a relação filial com Deus se concretiza na relação fraterna com os irmãos e, por isso, os cristãos devem colaborar na construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Mas é muito importante também para evitar a instrumentalização das igrejas para interesses e grupos contrários ao Evangelho, bem como a manipulação religiosa da política em função dos interesses de instituições e líderes religiosos que nada têm a ver com dimensão política da fé que é a construção do bem comum, a defesa dos direitos dos pobres e marginalizados e o cuidado na casa comum.
Infelizmente, tem crescido no Brasil a instrumentalização política da religião e a instrumentalização religiosa da política: líderes políticos que apelam e manipulam o sentimento religioso da população em função de seus interesses e líderes religiosos que tratam as igrejas como gado/rebanho e fazem alianças com o que há de pior e mais antievangélico no mundo político. Basta recordar aqui a aliança no congresso nacional entre as bancadas Boi (ruralistas), Bala (militares), Bíblia (evangélicos e católicos de direita) contra a reforma agrária, os direitos humanos, as florestas e os povos das florestas e em defesa do agronegócio, do armamento da população, da tortura e até de extermínio de pessoas. Chegamos ao extremo de se exibir uma arma gigante numa Marcha para Jesus em Vitória – ES (23/07) e do Presidente da República (que se diz cristão) afirmar que Jesus “não comprou pistola porque não tinha naquela época” (15/06) e defender num encontro do agronegócio: “Compre suas armas. Isso também está na bíblia” (10/08).
Mais do que nunca é preciso recordar que o mandamento que Jesus nos deixou é “amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34) e não “armai-vos uns aos outros”. Ele veio para que “todos tenham vida” (Jo 10,10). E isso tem consequências políticas. A fé cristã nos leva a colaborar com todas as pessoas e todos os grupos que lutam por uma sociedade mais justa e fraterna, independentemente da Igreja ou religião a que pertencem e de professarem ou não uma fé religiosa. É a política do “bem comum”, da “justiça social”, do “cuidado da casa comum”. E essa política, recorda o papa Francisco, é “uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum” (FT 180).