Além da questão do milagre, outro tema delicado é o que chamamos de FÉ. Palavra tão pequena, mais que se presta a tanta confusão. Pior, por conta da força emocional que ela carrega, passível de muita manipulação. O Papa Francisco chegou a afirmar que existem muitos mercenários da fé.
Quando se pede para definir fé pessoas dizem simplesmente: acreditar em Deus. Sim, sem dúvida. Mas o que mais? Aí, parece que as palavras começam a cessar. Os que leem a Bíblia podem citar Hebreus: “A fé é um modo de já possuir o que se espera, um meio de conhecer as realidades que não se veem” (Hb 11,1a). De novo se pergunta: e qual o desdobramento depois da citação?
A grande questão é que há uma dose de grande subjetividade, isto é, de forte experiência pessoal, diria, simbolicamente, que é algo do coração. Mas não existe “termômetro” para medir a fé. Não é possível verificar quantidade de fé. Seria pelos resultados? Quem tem fé consegue o que pede a Deus, e quem não tem, em linguagem bem popular: “tá ferrado”?
Muitas pessoas confundem fé como uma espécie de “moeda” com qual se pode barganhar com Deus. E isto está tão enfronhado na vida de muitas pessoas que elas podem ser vítimas, verdadeiramente, de mercenários, de charlatões, de vigaristas que procuram enriquecer com a fragilidade humana. Muitos pensadores percebendo tal fragilidade fazem críticas contundentes às religiões justamente neste lugar de carência humana.
E de fato, como disse um grande teólogo francês, já falecido, Chenu, “não existe fé em estado puro”. O que ele queria dizer? A fé está sempre envolvida em nossa realidade social, política e cultural e, sem dúvida, pode ser instrumentalizada. Como diria um pensador, pode ser sim “ópio do povo”.
Então, o que faremos para evitar que sejamos manipulados pelos mercenários? O grande critério para fazer um bom discernimento sobre isso é prestar atenção na pessoa e mensagem de Jesus Cristo. Em outras religiões também existem bons critérios que evitam a fé ser utilizada indevidamente. Contudo, em toda e qualquer religião pode haver quem se desvie do núcleo fundamental que faz da fé uma experiência profunda de humanização.
Quando alguém afirma ter fé, e fé cristã, significa dizer que ela decidiu viver a vida trilhando o Caminho de Jesus Cristo. Quando Jesus de Nazaré, no Lava Pés, disse: “ide e fazei a mesma coisa”, não estava apenas dando um bom conselho. Estava dando um propósito de vida.
Na maioria das vezes somos iniciados na fé por uma tradição na qual estamos inseridos desde criança. Nenhum problema quanto a isso. Porém, chega uma hora que precisamos tomar consciência do que realmente significa dizer, em nosso caso, creio em Jesus Cristo. A fé é uma resposta humana a uma presença não objetiva na realidade que nos dá sentido de viver. Devemos afirmar que cremos por que vale a pena, e não porque somos recompensados. A recompensa é a consciência do sentido fundamental de nossa existência, e não porque deixamos de ficar doentes ou prosperemos. Pessoas de fé também morrem na pandemia.
Quem escolhe o ateísmo pode fazer uma experiência legitima de outro sentido. Não somos melhores, em si, porque temos fé. Por isso, a fé precisa se expressar testemunhando o que acreditamos. Costumo dizer que o Deus, muitas vezes, negado pelo ateísmo, eu também nego. Não creio em um Deus vingativo e castigador, por exemplo.
Ora, até que ponto estamos dispostos e dispostas a nos deixar moldar pelo Caminho de relação com um Deus que se esvazia e se faz servidor em Jesus de Nazaré (Fl 2,6-11)? Por um Deus que não escolhe o caminho do poder dominador para salvar, mas o Caminho do Amor? Por um Deus que caminha com os pobres. Lembram o que disse Jesus aos discípulos que sonhavam com uma boa recompensa? “Muitos dos primeiros serão últimos, e os últimos serão primeiros” (Mc 10, 28-31).
Por fim, Mateus tratou de sintetizar: “Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes, estava nu e me vestistes” Mt 25,31-46).