ColunistasRosemary Fernandes da Costa

Fome de Páscoa: a convocação que vem da comensalidade

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Tempos pascais retornam num círculo amoroso que nos convoca do mais fundo de cada um a rever o sentido de nossa existência. Nos fazem re-ler, re-ver e sentir mais uma vez, como nova experiência, a trajetória de Jesus entre nós.

Costumo dizer que Jesus é nosso grande mistagogo – aquele que integrou em si mesmo a realização do projeto amoroso de Deus para todo o cosmos, assumiu profeticamente esse caminho e, através da própria vida, nos pegou pela mão e conduziu-nos passo a passo, por suas atitudes e ensinamentos, a vivermos como homens e mulheres novas, como irmãos e irmãs, como participantes de toda a criação.
Olhando para esse mestre-amigo-irmão, podemos encher nossos olhos com a experiência de comensalidade como caminho vital e de integração do ser humano em suas muitas dimensões. Jesus come com os publicanos, com os pecadores, com o povo, na mesa cotidiana. É na mesa que Jesus consolida laços, revê papéis sociais e orienta novos valores e novas atitudes. É servindo à mesa que Jesus forma o discipulado.

Por que será que a mesa foi tão central para Jesus? Ousamos indicar que é essa a experiência central no cristianismo: a experiência do amor+comunhão. E ainda ousamos mais: olharmos com toda reverência para a experiência da comensalidade entre os povos originários, entre as tradições afrodescendentes, entre as tradições que primam pela circularidade comunitária. O que estas experiências nos ensinam e nos inspiram?

O teólogo e amigo Erico Hammes nos lembra que a mesa nos fala de nossa condição humana e biológica, de nossa necessidade básica de alimento para a saúde integral. Mas vai além. Ela denuncia onde não há partilha dos alimentos. Ela denuncia a fome de pão, de alimento, de vida, de integridade e dignidade. A mesa nos fala de partilha, de coletivo, de vivermos juntos e cuidarmos uns dos outros, de nos importarmos uns com os outros. A mesa nos fala de que todos somos iguais e de que não existimos uns sem os outros. Ela anuncia o primado da relação, do desejo de vivermos como família, como soror-fraternos.

Ela nos fala de refeições em comum, em convivialidade, em ambientes que convidam à paz e à justiça. Na mesa comum reina ainda a festa, a alegria, a partilha abundante que anuncia a codependência, a paciência, o tempo necessário para as relações, os riscos que corremos juntos, os desencontros próprios das diferenças e a coragem de ir além, o sofrer juntos e renovar-se juntos.

Jesus escolhe a comensalidade para nos conduzir à sua herança mais preciosa – sermos alimentos umas para as outras, uns para os outros. No seu último ágape, Jesus integra toda a sua vida à vida de todos as mulheres e homens de todos os tempos, à toda a criação e nos convida a sermos comum-unidade, companheiros e companheiras, aqueles que comem do mesmo pão – o ‘pão vivo’.

Às vezes, chegamos a esquecer que na comensalidade há muitos elementos. Sentarmos à mesa, juntas e juntos, é um longo caminho, pois cada comum+união anuncia o novo, mas também denuncia conflitos próprios da existência.

Na vida de Jesus, pão e vinho se tornam corpo e sangue, são encarnados e ingeridos no dia a dia de nossa existência. Nela, há a entrega na cruz, mas também a unidade com o Pai e a vida no Espírito.
Isso mesmo, aquele que serve à mesa, “não veio para ser servido, mas para servir” (cf. Mc 10,45). O alimento se abre para novos significados – para a busca do encontro com cada pessoa, com cada comunidade, com todo ser vivo, com o passado, o presente e o futuro, com toda a natureza, com toda a criação. A mesa em comum transcende e ressignifica toda nossa vida.

A comensalidade em Jesus antecipa e anuncia o grande banquete do Amor, a certeza-esperança de que não faltará alimento. Não será isso mesmo o Reinado definitivo do Amor Maior?

Dentre as muitas fomes que sentimos em nossa existência, a mesa em comum nos fala da fome de sentido. E nos afirma que só há um sentido de viver: a partir da experiência mística do ágape, reverberar este testemunho em outras mesas – nas mesas comunitárias, nas políticas, nas ciências, nas tradições religiosas, nas economias nacionais e internacionais, nas matas e nas cidades, nas existências múltiplas e ricamente diversas. A comensalidade é o sentido da existência.

Na teologia dos Padres da Igreja, a comensalidade agápica vai nos aproximando de nós mesmos, de nosso sentido de viver, vai nos tornando crísticos, pascais, sacramentos no mundo.

Em Jesus, nada é em vão: cada diálogo, cada escolha simbólica, cada gesto, é sacramental. É marcado pelo conhecimento profundo do contexto pessoal e comunitário. Jesus não só ensina, mas sonda as dificuldades, percebe os conceitos formados, acompanha o processo de discernimento, faz pensar, deixa perguntas no ar, desequilibra os ouvintes. Cada instante é pascal, pois integra a vida e conduz ao mergulho processual no Mistério Amoroso que tudo orienta.

Que essa Páscoa nos conduza a essa sagrada integração entre o pão e as relações, às nossas co-dependências e fragilidades, mas também às nossas possíveis aberturas e encantamentos. Sabem por quê? Porque se hoje pudermos sentar juntas e juntos e repartimos pão e vida, essa será a base para as relações de paz e de liberdade. Porque a comensalidade é sinal do Amor Maior que já começa aqui e agora, e podemos sim ser testemunhos vivos da Páscoa para todas, para todos, para todo o cosmos.

A liberdade haverá, a igualdade haverá
e nesta festa onde a gente é irmão
o Deus da vida se faz comunhão!

Zé Vicente

Referência citada: Erico João Hammes, Pedras em pão: por que não? In: Fome, pão e eucaristia. Concilium 310,2005

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