Milagre não é fundamento da fé

Na coluna deste mês vamos tocar em um assunto muito delicado. Neste tempo de pandemia muitos já devem ter vivenciado situações nas quais um volume grande de orações foi feito para alguém e a pessoa não resistiu e veio a falecer. Como reagir diante de tal situação? Outro dia, assistindo um filme com minha filha, “O milagre da fé”, uma pergunta apareceu na película: “Por que o milagre acontece com uma pessoa e com outra não?” A resposta do filme não me agradou, por isso esta coluna.

Primeiramente é preciso afirmar: milagres existem e ponto. Não temos aqui condições de desenvolver tudo que se sabe a respeito. Nossa pretensão é apenas pontuar alguns elementos que se configuram a partir da adesão ao Caminho de Jesus Cristo. Outras religiões também têm suas próprias explicações.

A palavra “milagre” é a tradução latina possível de outras três palavras gregas no Novo Testamento (sabemos que o NT foi escrito em grego): “ergon” (trabalho), “dinamis” (força), e “semeion” (sinal). A palavra mais usada é “semeion”, isto é, sinal. Aqui já se pode fazer uma pergunta: por que “sinal” é a mais usada?

É interessante observar, contrariamente ao que muitos fazem hoje, Jesus nunca marca dia, hora ou lugar para realizar um sinal. Sinal de quê? Sinal do BEM que deve ser feito com os recursos disponíveis. O chamado milagre aparece sempre no CAMINHO, e frequentemente a resposta é: “vai em paz, tua fé de salvou”.

Toda narrativa de milagre tem uma função catequética, isto é, quer ensinar um caminho para vivenciar a fé. Por exemplo, em Mc 3,1-6, o chamado milagre do homem da mão paralisada, Jesus realiza o sinal para indicar que dor e sofrimento não podem ser explicados como consequência do pecado. A “multiplicação dos pães e peixes” indica claramente a necessidade da partilha. Quando Jesus Cristo realiza o sinal da partilha ele faz talvez o maior dos milagres: quebrar o egoísmo que vive no coração humano.

Se tivéssemos um sistema de saúde pública que atendesse com dignidade a grande maioria das pessoas, certamente muitos “milagres seriam realizados”. Sabemos que a fome no mundo não pode ser explicada por fatores subjetivos, como preguiça ou acomodação, mesmo sabendo que certamente existem pessoas que realmente podem se acomodar. Mas, por favor, milhões de pessoas não passam fome porque querem.

Finalmente, é fundamental observar que as narrativas de milagre não possuem centralidade nos textos dos Evangelhos. Não estão ali para demonstrar a divindade de Jesus de Nazaré. Se assim fosse os evangelistas teriam escrito praticamente só narrativas de milagres. O grande objetivo dos Evangelhos é transmitir o “querigma”, isto é, a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. É uma Boa Nova (tradução da palavra grega “evangelho”) para quem quiser receber. E, quando acolhe com profundidade, a pessoa passa a estar disposta a fazer da própria vida aquilo que Jesus fez com a dele.

A felicidade não se explica pela ausência de dor e sofrimento, mas pela capacidade de enfrentar tais condições de vida com dignidade. Foi esta a grande revelação de Deus na vida de Jesus de Nazaré. O processo salvífico revelado em Jesus Cristo nos indica um caminho que começa aqui e agora.

Sim, podem acontecer milagres. Mas sabemos que muitos vivem a fé sem esta necessidade. Na tradição católica, os santos e santas não são pessoas que não sofreram. São pessoas que testemunharam a fé pela virtude de realizar o Caminho de Jesus Cristo, mesmo com suas fragilidades humanas.

Quantas pessoas morrem, sofrem, ou estão em condições de completa vulnerabilidade e não são protegidas? Não se pode afirmar que duas crianças mortas à tiro na calçada de casa, como aconteceu aqui em um bairro vizinho, seja vontade de Deus. Porém, Deus nos dá força para continuar a vida buscando mudar tal situação. Consola-nos para manter viva a esperança de podermos vivenciar a Sua imagem e semelhança que passa pelo AMOR.

Portanto, o fundamento da fé é a resposta de aceitação do Caminho de Jesus Cristo, seja qual for a situação de nossa vida.

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