“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
“Somos chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença quando vê o sofrimento dos irmãos” (cfr.: Carta Apostólica Misericordia et Misera – 20).
Certamente o ano de 2020 ficará marcado como o ano em que uma catástrofe causada por um inimigo comum, a Covid 19, abateu-se sobre o mundo inteiro deixando lastros de dor e sofrimento por tantas perdas e mortes. Será marcado igualmente, como um ano no qual se evidenciou mais fortemente a nossa fragilidade humana expressa no sentimento de impotência e incertezas.
No Brasil, este “inimigo comum” deixou lastros ainda mais aviltantes: às perdas e mortes somou-se o caos no governo deixando graves sequelas na saúde, na educação, no meio ambiente, na economia… Alguns destes danos serão provavelmente irreparáveis.
É verdade que a pandemia desnudou nossa realidade brasileira e o que estava “debaixo do tapete”, veio à luz. Aí, as desigualdades sociais mostraram seus rostos e endereços modificando inclusive as estatísticas apontadas pelo governo. Eram rostos de moradores de rua, de imigrantes e refugiados, de famílias inteiras sem nenhuma proteção do Estado, além do desemprego em grande escala. Era necessário ser presença junto às milhares de pessoas acometidas pelas consequências do vírus. E foi aqui que esta pandemia nos obrigou a exercer a misericórdia que estava latente em nossos corações e descer nos mais diferentes submundos da vida humana, em muitos casos, verdadeiros “infernos”, porém, era a única maneira de encontrar Deus. Mas como ser presença num momento em que os protocolos de saúde nos orientam para o distanciamento social?
A solidariedade tomou conta de nossas comunidades, que investidas do apelo do Papa Francisco: “Cada um, em virtude do Batismo, é chamado a ser uma presença viva na sociedade, animando-a com o Evangelho e com a força vital do Espírito Santo” assumiram ser presença misericordiosa na vida daqueles e daquelas que nestes submundos são sujeitos no Reino de Deus.
Muitas pessoas destas comunidades encontraram maneiras de ser presença física nestes submundos, indo ao encontro das diferentes realidades. Outras, no entanto, descobriram que podem ser presença, mesmo quando esta presença física não é possível, trazendo para o debate a situação da vulnerabilidade das pessoas, através das mídias sociais, para expressar a mensagens de compaixão, defesa da justiça e garantia de direitos. Contudo, nos dois modos de presença, prevalece a misericórdia, porque é ela que imprime a presença de Deus nas ações solidárias.
A misericórdia, então, tornou-se um movimento de entrar na miséria humana, colocar-se no lugar social do outro e da outra, comover-se com sua fragilidade, numa atitude de compaixão, de ternura, de cuidado. Foi este o gesto do Mestre Jesus: tomar sobre si as nossas dores e fragilidades.
Se de um lado esta pandemia vitimou milhares de pessoas, é importante ressaltar que, também, suscitou a solidariedade e humanizou muita gente através da presença solidária. “A misericórdia possui também o rosto da consolação. «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1): são as palavras sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje, para que possa chegar uma palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição. Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no Senhor ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos à dura prova, mas não deve jamais esmorecer em nós a certeza de que o Senhor nos ama. A sua misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os dias da tristeza e da aflição. Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado” (Carta Apostólica Misericordia et Misera – 13).
Assim, convém lembrar que a misericórdia não tem prazo de validade e que não estaremos liberados e liberadas depois desta pandemia. O desafio permanece: Como vamos continuar sendo presença na vida destes irmãos e irmãs nossos?
Neuza Mafra – 25 de outubro de 2020