A Palavra de Deus é o chão a partir do qual refletimos e transformamos a nossa história. Essa Palavra que está na Escritura Sagrada (a Bíblia) também está presente na nossa vida concreta, pois “a Palavra se fez homem e habitou entre nós” (Jo 1,14). Como nos lembra o papa Bento XVI, “veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da fé cristã não ser uma ‘religião do Livro’: o cristianismo é a ‘religião da Palavra de Deus’, não de ‘uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo’” (VD 7). E para perceber essa Palavra viva nas diversas realidades da vida, é fundamental conhecermos e aprofundarmos sua presença na Escritura. Por isso, procuraremos apresentar uma pequena introdução à Bíblia. Com noções básicas, mas que podem ajudar nossas comunidades a recordar pontos importantes da Escritura.
Mas precisamos ter sempre em mente que não estudamos a bíblia para ficarmos mais sabidos ou virarmos especialistas num texto antigo. Estudamos a bíblia para compreender a mensagem de Deus para aquele tempo e o que essa mensagem nos diz hoje. É para conhecermos a vontade de Deus e vivê-la que nós estudamos a bíblia. E esse conhecimento não pode ficar nas faculdades ou nos livros. A bíblia é um livro que traz a tradição dos pobres e oprimidos, da experiência do povo com o Deus libertador. Já afirmou o papa Francisco que “constitui um refrão permanente da Sagrada Escritura a descrição da ação de Deus em favor dos pobres”. Contudo, essa tradição dos pobres foi posta por escrito por escribas nos templos e palácios. Por isso, “a leitura da Bíblia a partir dos pobres deverá ser, aqui como em todas as partes, uma leitura das lutas dos pobres e da opressão infligida pelos poderosos. Este processo pode ser visto dentro da Bíblia mesma, que é um livro dos pobres, mas que foi manuseado pelos opressores” (Jorge Pixley).
Para compreendermos como isso se dá na bíblia, precisamos esclarecer alguns pontos desde o começo. Primeiro, como afirma o documento A Interpretação da Bíblia na Igreja, a Escritura é “Palavra de Deus em linguagem humana” (p. 37, 57, 84). Essa definição é muito valiosa, assim como a ideia de INSPIRAÇÃO. Durante muitos séculos, a Igreja acreditava que o Espírito Santo tinha como que DITADO aos autores sagrados o que dizer. Hoje se entende que não foi assim. Os autores sagrados nem sabiam que estavam sendo instrumentos de Deus para transmitir uma mensagem que atravessaria os séculos. Por isso, o Concílio Vaticano II afirmou que “para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como VERDADEIROS AUTORES, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria” (DV 11).
A bíblia não foi escrita de uma vez, muito menos por um só autor. Teve um processo de escrita/redação de uns mil anos. Mesmo alguns livros levaram séculos para chegar à redação final, a qual temos acesso. Por isso, é preciso admitir que ela contém também erros, frutos das limitações humanas. É verdade que o Concílio afirma que “… se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, PARA NOSSA SALVAÇÃO, quis que fosse consignada nas sagradas Letras” (DV 11). Isso quer dizer que a mensagem salvífica, tudo que diz respeito a nossa salvação está ali; mas não quer dizer que o modo como foi apresentado não tenha limitações, pois contém “também coisas imperfeitas e transitórias” (DV 15).
A bíblia contém erros em matéria de ciência e história; tem contradições e incoerência nos textos; erros nas citações do AT feitas pelo NT; diferenças teológicas; erros dos copiavam os textos, falta de informação adequada para a época, mentalidade e visão de Deus incompleta etc. A bíblia contém verdades salvíficas, não necessariamente científicas. Contém as indispensáveis verdades para nossa salvação, mas também não contém toda a verdade salvífica. Por isso, podemos entender como ela foi e é manipulada. A experiência do povo com um Deus libertador e companheiro dos pobres e oprimidos está presente na bíblia e é quase como seu eixo. Contudo, ela também é fruto de redações feitas nas cortes, palácios e templos que por vezes maquiam essa experiência. Ao aprofundarmos esses pontos ao longo da Escritura, procuraremos compreender a estrutura, contexto, características e mensagem dos textos e, assim, podermos assumi-la como o chão a partir do qual refletimos, rezamos e transformamos a nossa história.