O papa, os judeus e a Carta aos Gálatas | Mês da Bíblia 2021

Neste mês de setembro nossas comunidades cristãs católicas são convidadas a ler, meditar e viver a carta de Paulo para as comunidades da Galácia. Na coluna anterior já vimos as chaves de leitura para a interpretação deste texto. Resumindo bem a posição de Paulo frente aos retrocessos provocados pelos cristãos judaizantes, a proposta do Apóstolo é clara: no plano divino, revelado na história do povo de Israel, é a fé em Jesus Cristo, e não a prática da Lei (Torá), que está na origem da salvação. Assim, para Paulo, é a graça de Deus que salva e não a observância da Torá. A Aliança com Deus salvou Abraão “quatrocentos e trinta anos antes da Lei” (cf. Gl 3,17). Ora, se Abraão salvou-se sem a Lei, esta Lei não é fundamental para a salvação. Ele lembra aos gálatas que a salvação vem de Deus àquele ou àquela que acolhe com fé a proposta do Evangelho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado. A liberdade do cristão está em submeter-se ao Espírito e não aos preceitos da Lei (cf. Gl 5,1 até 6,10).

Ora, estes ensinamentos de Paulo na Carta aos Gálatas geram sempre uma tensão no diálogo entre cristianismo e judaísmo. Sempre que algum pronunciamento da Igreja Católica se fundamenta na Carta aos Gálatas, é de se esperar uma reação das comunidades judaicas. Ora, desde que voltou de seu restabelecimento pós-operatório, o papa Francisco tem usado suas Audiências Gerais das quartas-feiras para fazer uma catequese justamente sobre a Carta aos Gálatas. 

Na Audiência Geral de 11 de agosto passado, Francisco centrou sua catequese na pergunta de Paulo: “O que é a Lei?” (cf. Gl 3,9). Resumindo, diz o papa: “o Apóstolo explica que Aliança e Lei não estão ligadas de modo indissolúvel, pois a aliança estabelecida por Deus com Abraão estava fundamentada sobre a fé no cumprimento da promessa e não sobre a observância da Lei. A Lei, mesmo tendo um papel importante na história da salvação, não dá a vida, não oferece o cumprimento da promessa. Quem busca a verdadeira vida necessita dirigir o seu olhar para a promessa feita por Deus a Abraão e para a sua plena realização em Cristo. Assim se apresenta a radical novidade da vida cristã: todos aqueles que creem em Jesus Cristo são chamados a viver no Espírito Santo”. 

Tais afirmações foram suficientes para gerar um mal-estar das instituições judaicas. Contra esta catequese se pronunciaram o Setor de Diálogo do Grão-Rabinato de Jerusalém, bem como o rabino da sinagoga de Roma. Em cartas públicas, eles pedem que o Vaticano se pronuncie sobre o que consideram “dúvidas doutrinárias”, já que o ensinamento papal sugere que a Torá está obsoleta e que tal posição também contrapõe o Deus justiceiro da Antiga Aliança ao Deus misericordioso da Nova Aliança. Posições estas, consideram os rabinos, devem ser clareadas e que “qualquer conclusão depreciativa seja claramente repudiada”.

Diante destas reações havia uma certa curiosidade sobre a próxima catequese do papa Francisco sobre a Carta aos Gálatas em sua Audiência Geral. De fato, ela ocorreu neste último 01 de setembro. Vale a pena transcrever as palavras com que Francisco começa a sua catequese porque suas palavras nos ajudam a viver melhor este Mês da Bíblia:

“Continuaremos (hoje) a explicação da Epístola de São Paulo aos Gálatas. Esta não é uma coisa nova, esta explicação, ou uma coisa minha: o que estamos estudando é o que São Paulo diz em um conflito muito sério com os gálatas. E também é Palavra de Deus, porque entrou na Bíblia. Não são coisas que alguém inventa, não! É algo que aconteceu naquele tempo e que pode ser repetido. E de fato vimos que isso se repetiu na História. Esta é simplesmente uma catequese sobre a Palavra de Deus expressa na Epístola de Paulo aos Gálatas. Não é outra coisa. É preciso manter isso sempre presente”.

Ou seja, Francisco deixa claro que nós, cristãos, acolhemos o texto de Paulo aos Gálatas como parte da revelação de Deus. A carta é para nós Palavra de Deus e assim temos que receber, interpretar e viver esta mensagem. Não podemos fugir desta questão. Estudar a carta aos Gálatas não deve ser interpretado como um ato de ruptura com as instituições judaicas atuais. Nem estas instituições devem ler tal catequese como um gesto de ruptura. 

Todos estes acontecimentos recentes devem nos alertar que o estudo da carta aos Gálatas é sempre sério e tenso. Temos que saber administrar estas tensões, tanto no diálogo com o judaísmo como também no diálogo entre catolicismo e Reforma protestante. Temos que admitir que nesta carta Paulo também “protesta”, afirmando que obrigar uma pessoa batizada retornar às práticas legais é negar o valor da ação salvífica que se cumpriu plenamente no Senhor Jesus. A delicada questão da observância da Lei, e também a questão da justificação pela fé, marcaram toda a caminhada da teologia cristã. É importante notar que, mesmo depois de quase dois mil anos, Paulo continua incomodando as instituições.

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