Ouvir o canto de Isabel

A Boa Nova das Comunidades lucanas está nos acompanhando nas liturgias dominicais. Entre os Evangelhos sinóticos seja o que mais nos ajuda a compreender que a história de Deus se faz realidade na história cotidiana vivida por mulheres e homens. O protagonismo das mulheres é o elemento fundamental desta história: abrem sua obra com elas, e, o testemunho delas é referencial ao encerrar o evangelho. Lucas 1-2 e 24 colocam as bases históricas-sociais e teológicas sobre as quais constroem o caminho de Jesus e das comunidades originarias tendo a participação decisiva, igualitária, autônoma das mulheres.

Há um debate aberto: o evangelho de Lucas é favorável mais do que os outros evangelhos às mulheres? O debate é aberto e não há consenso, mas nestes escritos, vou deixar a questão de lado. Sublinho somente que o evangelho de Lucas tem cerca de 20 referências a mulheres que não encontramos nos outros evangelhos. 

Convido vocês a fazer esta pesquisa, sem dúvida enriquecedora sobretudo nas intuições que vocês podem elaborar. Pessoalmente fiz isso e partilho minhas intuições tendo como chão o caminho que como Igreja estamos vivendo, o da sinodalidade.

A fina arte histórica narrativa que Lucas coloca à disposição das comunidades nos presenteia nos capítulos 1 e 2 com a reflexão teológica de suas comunidades: a Boa Nova de Jesus não tem início na sua idade adulta, mas sonho-anúncio, gravidez-feto, amamentação-bebê, cuidado-criança são o lugar onde a Boa nova é gestada e vem à luz. Deus salva na relação-presença com mulheres portadoras de vida. Deus salva e liberta se tornando carne no mistério da carne de mulheres que engravidam e dão à luz. Experiência misteriosa do sagrado que se realiza na vida através de fala de anjos, de Espírito que envolve, de corpos de homens, de mulheres, crianças.

Na sua arte narrativa Lucas nos convida a entrar na história através de narrações paralelas: o anúncio e nascimento de João Batista e Jesus. 

“… nos dias de Herodes …”(1,5) palavras que nos introduzem numa história onde há violência e morte, que nos convidam a fixar nossa atenção sobre um casal: Isabel e Zacarias“… ambos justos … neles não havia criança, porque Isabel era estéril e ambos eram avançados em idade” (1,7).

A apresentação de Isabel e Zacarias minuciosamente paritária nos faz recordar Sara e Abraão. No entanto a esterilidade de Isabel vem colocada em primeiro plano, implicitamente culpada pela ausência de criança. A narração avança nos fazendo entrar no templo com Zacarias, participar do anúncio do anjo Gabriel, sair do templo mudo, voltar para as montanhas de Judá, somente no final da narração lembrando-se de Isabel. Acompanhando o roteiro, também as interpretações e comentários de 1,5-25, têm relegado Isabel à margem, dando destaque a Zacarias. 

A Boa Nova, porém, é vivenciada para ambos embora em tempos diferentes: Zacarias sai do templo mudo por causa de sua incredulidade. O primeiro louvor, neste evangelho brota da boca de Isabel. “Isto me fez o Senhor, quando olhou para baixo para anular o meu opróbrio entre as pessoas” (1,25).

Opróbrio, vergonha, discriminação, exclusão devido a esterilidade apontam para humilhação a partir de sua sexualidade; seu sofrimento existencial vem das observações maldosas ou alusões a esterilidade associadas a compreensão de pecado e maldição.

Do opróbrio se eleva a voz de Isabel que canta sua libertação. O primeiro cântico de louvor, no evangelho das Comunidades lucanas o escutamos de Isabel. Gravidez e louvor, guardados primeiro no silêncio por cinco meses, como dons preciosos, explodem de sua boca, canta a Boa Nova de libertação: seu ventre floriu, uma criança está sendo gestada, Deus anulou a discriminação.

A narração se encerra mantendo nosso olhar em Isabel: em seu ventre o novo se manifesta e concretiza.

O que aconteceu a Zacarias em sua volta para casa? Será que por ter ficado mudo escutou mais a voz de Isabel? Será que algo mudou na relação entre Isabel e Zacarias? Será que foi percebendo que o sagrado habitava na casa, no corpo de Isabel? Será que esta mudança atraiu e agradou o olhar de Deus que a abençoou com uma criança? 

Sem maiores detalhes, pressupondo mudanças na relação sexual dos idosos Isabel e Zacarias, a narração afirma a concepção e a gravidez de Isabel. No corpo da mulher, no seu ventre grávido salvação e libertação se realizam. E, a comunidade guardou para nós a memória do seu cântico de louvor, tornando-o o primeiro cântico de louvor em seu evangelho.

O cântico de louvor de Isabel denuncia as relações sociais e religiosas construídas de forma assimétricas que humilham mulheres que não têm criança e que por causa disso são colocadas na última esfera da hierarquia social e excluídas da esfera religiosa. Os cânticos de louvor que brotam hoje das vozes das mulheres nas comunidades o que denunciam?

No templo, Zacarias incrédulo, ficou mudo. A igreja precisará ficar muda para apreender a escutar a voz das mulheres? Esta Igreja que relega ao último versículo as mulheres, silencia seu cântico, descarta seu poder de engravidar o novo e assim anula seu próprio poder salvífico libertador.

A Divina Ruah abra os ouvidos, rompa a incredulidade, ajude a percorrer o caminho de Zacarias: sair do templo, voltar para periferia, para casa, voltar mudo, e, no silêncio aprender a ouvir, acolher a voz de Isabel, seu canto de louvor pelo novo que carregam em seu ventre.

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