ColunistasJoaquim Jocélio

Seguindo os passos de Jesus

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Em nossa introdução ao Novo Testamento, trataremos sobre os Evangelhos. Eles não são uma biografia de Jesus, mas uma catequese feita pelas primeiras comunidades cristãs a partir das tradições que receberam sobre o Senhor. Existem quatro Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), ou seja, reconhecidos pela Igreja como coerentes com a mensagem de Jesus. Cada um trata sobre o Mestre de Nazaré com perspectivas diferentes. Trataremos aqui sobre os Evangelhos Sinóticos e o livro Atos dos Apóstolos profundamente ligado a um dos Sinóticos (o Evangelho de Lucas).

Sinóticos são os três Evangelhos semelhantes: Mateus, Marcos e Lucas. A palavra vem do grego: syn (com, junto a) e ópticos (olho, olhar). São Evangelhos que podem ser vistos juntos, com um só olhar porque são semelhantes. A questão sinótica estuda o surgimento desses três Evangelhos, como um é dependente dos outros, quem veio primeiro, etc. Até hoje, a explicação mais bem aceita é a chamada Teoria das duas fontes: O Evangelho de Marcos e uma fonte de ditos de Jesus chamada Fonte Q seriam o material básico para os demais Evangelhos sinóticos. Essa teoria diz que Marcos se baseou em tradições orais e escritas recebidas sobre Jesus; Mateus e Lucas utilizaram, cada um, fontes próprias, utilizaram o Evangelho de Marcos e essa tal fonte Q.

Evangelho de Marcos. Quanto ao lugar e ao contexto da escrita, há quem defenda Roma. Ele escreve para uma comunidade que foi perseguida. O que leva a pensar na Igreja de Roma sob a perseguição de Nero a partir de 64 d.C. Temos termos em aramaico traduzidos (3,17; 7,34; 10,46; 15,22.34), os quais indicam que seu público não sabe essa língua, portanto não pode ser da Palestina, muito menos da Galileia onde tal língua era falada. E Marcos também tem que explicar alguns costumes judaicos, o que pode indicar que ele não escrevia para judeus helenistas, mas para gentios. Possivelmente foi escrito no final dos anos 60 ou no início dos 70. O texto todo procura esclarecer quem é Jesus. A primeira parte trata mais da identidade de Jesus (quem ele é) e a segunda da natureza da sua messianidade (que tipo de Cristo ele é). O Segredo Messiânico é um grande tema em Marcos: revela que não se pode tomar decisões apressadas sobre Jesus, representadas na figura de Pedro que professou corretamente Jesus como Messias, mas não entendeu o verdadeiro sentido de seu messianismo como servo sofredor. Só pela cruz e ressurreição e no seguimento se entende quem é Jesus. Um pagão enxerga a filiação divina no crucificado no final do Evangelho (15,39). 

Evangelho de Mateus. A comunidade para a qual Mt escreve é provavelmente uma comunidade mista, de judeu-cristãos mais rígidos e de cristãos vindos do paganismo e mais abertos. Mateus escreve para cristãos de língua grega. Acredita-se que tenha sido escrito em Antioquia, na Síria. Em uma de suas parábolas, faz menção à destruição de Jerusalém, por isso deve ter sido escrito depois de 70, pensa-se entre 80 e 100. Parece ser uma comunidade que se acomodou diante da vinda definitiva de Cristo ter retardado, assim, Mt insiste na importância de vigiar. Iimagina-se que havia muitas divisões na comunidade, daí a insistência de Mt no perdão e na reconciliação. Diante de alguns que insistiam na arrogância de alguns títulos, como senhor, mestre, pai, que vinham do judaísmo, Mt recorda que a comunidade cristã é de irmãos. Mateus ou o autor desse Evangelho, seja ele quem for, era um judeu muito conhecedor da lei e convertido ao cristianismo. Dois textos limitam a missão a Israel (10,5s e 15,24), mas no final essa missão se universaliza (28,19). O texto não fala de ascensão, mas sim que Jesus estará com eles até o fim dos tempos; a ênfase é na presença de Jesus em meio à comunidade. Ele é o Deus conosco (Emanuel), o Javé salva (Jesus). Em Mt, é a lei que está sujeita a Jesus, não o contrário, pois ele é quem lhe dá plenitude; a lei é limitada (até o fim do mundo), mas as palavras de Jesus jamais passarão (24,35); não é a lei que permite acesso ao Reino dos céus (5,19). Há grande ênfase e importância quanto ao Reino de Deus, que já é experimentado pelos que acolhem a Jesus, que por sua vez, concede a graça para viver a vontade de Deus. E aqui é bom ter claro que “o reino de Deus não é uma ‘boa notícia’ para todos indiscriminadamente. Não podem ouvi-la todos por igual: os latifundiários que se banqueteiam em Tiberíades e os mendigos que morrem de fome nas aldeias” (J. A. Pagola). Jesus é anunciador desse Reino e mestre (4,17.23; 9,35); é aquele que ensina com o poder de interpretar a lei entendida como expressão da vontade de Deus. Ele é uma figura que transcende até a Moisés. Mt é o único Evangelho em que aparece a palavra “Igreja” (16,18; 18,17). A Igreja não é o Novo Israel, mas o Verdadeiro Israel; não se identifica com o Reino, mas é sinal dele. Há grande ênfase na prática do amor; insistência numa comunidade de irmãos, sem títulos honoríficos; a ênfase na fraternidade era tão grande que a reconciliação devia vir primeiro que a liturgia (5,23-24); além do mais, a comunidade será julgada pela atenção aos pobres (25,31-46).

Evangelho de Lucas. Cristão da segunda geração que escreve para os cristãos helenistas em contato com outra cultura, mas em continuidade com a tradição. Uma boa forma de conhecer a realidade do povo na época de Jesus é conhecendo as suas parábolas. O autor foi muitas vezes identificado com Lucas, médico e companheiro de Paulo (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11). É um gentio convertido ou um judeu helenizado. A obra foi escrita fora da Palestina em 80/85 d. C.  Como historiador que busca ser, Lucas mostra o contexto político da época de Jesus. Entre o domínio de tiranos, nasce o verdadeiro salvador. Interessantes são o conteúdo da pregação de João Batista, que é próprio da redação Lucana (L), e a genealogia que o evangelista faz, pois a mesma vai até Adão e Deus, não só até Abraão como Mateus. Sua ideia é passar a universalidade da salvação. Um tema fundamental que orienta todos os outros em Lucas é o Espírito Santo: É ele que age em João Batista ainda no seio da mãe (1,15) deixando-a também cheia do Espírito (1,41), em Maria para que ela conceba (1,35); age em Zacarias para ele profetizar (1,67); inspira Simeão (2,25-28); vem no batismo de Jesus (3,22) e o acompanha no deserto nas tentações (4,1); Jesus volta à Galileia com a força do Espírito (4, 14), e é impulsionado por ele a evangelizar os pobres (4,18); ele é dado pelo Pai aos que pedirem (11,13); inspira o que os cristãs devem dizer (12,12); age em toda atividade de Jesus. Lucas dedica, mais que os outros evangelistas, espaço para as mulheres em sua obra. Isabel (1,13); Maria (1,26); a profetisa Ana (2,36-38); as discípulas que acompanhavam Jesus, indo muitas até a cruz (23,27.49); as primeiras testemunhas da ressurreição são mulheres (24,1-8). A misericórdia é um dos temas centrais em Lucas (1,50.54.58.72. 78); é a atitude do bom samaritano (10,36); tema das três parábolas do capítulo 15. Outro tema recorrente são os pobres. Em Lc, Jesus diz ter sido enviado para anunciar o Evangelho aos pobres (4,18; 7,22); afirma que o Reino é dos pobres; acrescenta os “ais” contra os ricos (6,20-26); aconselha a darem os bens aos pobres (11,41; 12,33, 14,33; 16,14-15); traz a parábola do rico e do Lázaro (16,19-31) e do rico insensato (12,13-21). “Não tenhais medo pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino” (12,32).

Atos dos Apóstolos. A obra trata dos primeiros momentos da Igreja, comunidade dos seguidores e das seguidoras de Jesus, mostrando como foi se realizando o mistério de salvação de Deus em meio às contradições de cada contexto. As fontes de Atos vão desde relatos orais guardados e transmitidos pela tradição até textos de discursos e orações da Igreja primitiva. Contudo, há em boa medida a criatividade teológica do autor. Os Atos têm 18 grandes discursos (1/4 da obra) ou 24 (1/3 se se contam as intervenções menores). Esses discursos são muito provavelmente construções do autor, ainda que os coloque na boca de personagens, como Paulo ou Pedro. Sobre as viagens missionárias de Paulo aqui narradas, muito pode ser confirmado pelos escritos de Estrabão e pelas escavações modernas. Há um grande consenso de que o autor de Atos dos Apóstolos é o mesmo autor do Evangelho de Lucas, pois a afinidade literária é muito grande. Ambas formam duas partes de uma única obra. A tradição afirmou que esse autor é Lucas. Seria ele o companheiro de viagem de Paulo e médico (Cl 4,14)? Algumas passagens dos Atos narradas em primeira pessoa durante as viagens de Paulo (At 16,16-17; 20,6-7.13; 21,1.7.12) levaram muitos a crer que sim. Entretanto, diante das divergências com textos do próprio Paulo, hoje a tendência nos estudos é acreditar que o autor seria outro. Os Atos mostram como o projeto de Deus vai acontecendo no mundo por meio dos discípulos e das discípulas de Jesus. O anúncio que começa em Jerusalém vai a Samaria e a todos os povos, até chegar à grande Roma (1,8; 8,1-8; 11,19-26; 23,11). Apesar de Pedro e Paulo parecerem ser os personagens de destaque na obra, é o Espírito o verdadeiro protagonista, que guia a sua missão (mencionado ao menos 56 vezes). A obra apresenta o surgimento dos diversos ministérios na comunidade e como todos devem ser utilizados para o bem do Reino de Deus. Em At 2,42-47; 4,32-35, aparece o ideal de comunidade e de vida fraterna, de partilha e de igualdade, ou seja, como a Igreja deve ser. “Os leitores têm diante dos olhos um projeto de comunidade ideal no qual inspirar-se. Isto não exclui que Lucas tenha utilizado algumas lembranças ou informações de primeira mão… Sobre o entusiasmo e a generosidade da primeira Igreja logo após o Pentecostes” (R. Fabris). Jesus anunciou o Reino de justiça, fraternidade e paz na força do Espírito. A Igreja, comunidade dos seus seguidores e das suas seguidoras, deve continuar no mundo sua missão. Eis nosso desafio!

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