Será a sinodalidade apenas uma proposta pastoral e pedagógica para enfrentarmos a crise dos tempos atuais, que passa também pela Igreja? Sim, esse é um possível caminho para essa questão, mas na reflexão a seguir, desejamos pensar nessa proposta como resgate da espiritualidade constitutiva da comunidade eclesial. Ou seja, um convite para retomarmos uma das dimensões fontais, presente desde os primeiros séculos nas comunidades cristãs; dimensão fundamental que, tantas vezes, não foi considerada em sua centralidade.
Não estamos fazendo uma busca arqueológica ou mesmo como exercício de imaginação para justificar as escolhas do presente. A experiência de caminhar juntos, ou seja, a experiência sinodal, é própria do discipulado de Jesus, inclusive, os primeiros cristãos eram conhecidos como “os do caminho” (At 9,2). Na verdade, o termo sinodalidade é deste nosso tempo, não podemos encontrá-lo nos testemunhos das primeiras comunidades, mas podemos ir ao fundamento do caminhar, indagando o que significava para elas caminharem juntas como discípulas de Jesus de Nazaré? Quais foram suas dificuldades? Como elaboravam as diferenças que surgiam? Como buscaram formas de integração?
Esse é um exercício de espiritualidade e não de busca de receitas prontas, o que não seria possível. Mas sim, é possível nos determos nas experiências fontes, primeiras, como inspiração, como mística e profecia para nossos tempos. Vejamos algumas narrativas que nos auxiliam nesse caminho espiritual.
Iniciamos por um dos indicadores que Jesus mesmo toma para a missão dos discípulos – E ele, assentando-se, chamou os doze, e disse-lhes: Se alguém quiser ser o primeiro, será o derradeiro de todos e o servo de todos. (Mc 9,35). Jesus oferece um novo horizonte para o serviço do discipulado, provoca uma revisão do significado de serviço. Essa orientação é a chave para o exercício do poder e referência para a coesão grupal.
No caminho para Jerusalém encontraremos os discípulos diante dessa questão, o que ressalta a sua relevância, a nova compreensão que era inaugurada. Afinal, o que era mais importante? Qual o lugar de cada um no grupo? Haveria privilégios, formas de poder? A estas questões e outras semelhantes, Jesus se posiciona claramente, através de parábolas, narrativas, orientações e, principalmente, do próprio testemunho: Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. (Mc 10, 43-44)
Jesus não está preocupado com uma metodologia, mas indicando o fundamento para o caminho da comunidade. A mensagem da Boa Nova inicia a partir do testemunho daqueles que são seus mensageiros. O sonho de Jesus não é uma meta filosófica, ou mesmo uma notícia para os de fora da comunidade, e sim o que constitui a comunidade, é uma prática cotidiana, interna às comunidades.
Vejamos mais um importante indicador da espiritualidade que fundamenta o caminho sinodal nas primeiras comunidades: o discipulado se reflete na comunhão. A comunhão é compreendida como dom do Espírito e exercício interno. É participar da experiência do Espírito através da fé compartilhada, solidária, sempre vinculada ao serviço – Quanto ao mais, irmãos, regozijai-vos, sede perfeitos, sede consolados, sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de paz será convosco. (2Cor 13,11).
A comunhão não é compreendida como uniformidade de pensar ou uma forma de obediência ou submissão, mas como a possibilidade de acolher dons, carismas, formas de pensar, culturas, orientados pelo diálogo e consciência de que participamos do mesmo Espírito, na diversidade, mas todos no serviço comum, ao Reino. A comunhão só é possível quando estamos abertos à diversidade, sabedores de que há muitas formas de expressar as relações com o Amor Divino e não uma única forma. É um fundamento teológico, antes de ser um critério pastoral. Na carta aos Filipenses, não apenas se fala da diversidade, mas da importância da abertura no amor, na gratuidade, na humildade – Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. (Fil 2,4)
A comunhão ainda nos convoca à ética comunitária, ou seja, não é possível caminhar em comunidade se há membros excluídos, não acolhidos em alguma situação ou especificidade – De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele. (1Cor 12,26)
A espiritualidade sinodal constitui comunidades que se reconhecem e vivem em relações concretas de interdependência e de reciprocidade. São organismos vivos, comunidades de vida que reconhecem a riqueza de cada irmã e irmão, que reverenciam a construção comunitária de interpretações, gestos, caminhos. Constroem assim uma identidade não individualista ou autorreferenciada, mas uma identidade na relação dinâmica movimentada pelo Espírito.
Ao nos darmos conta de que a experiência da sinodalidade é um caminho espiritual que constitui as comunidades eclesiais nos sentimos todas e todos Povo de Deus, sem distinção, sem discriminações ou privilégios. Somos impulsionados à nossa capacidade de dialogar, de discernir comunitariamente, de amar e acolher o Sopro divino amoroso. Somos conscientes de nossa participação como sujeitos ativos, com palavra, com dons e vocação pessoal, responsáveis pela missão e construção do presente e futuro de um projeto que aponta para a Vida para todos.
Enfim, a sinodalidade é caminho espiritual urgentíssimo. Uma palavra nova, mas uma expressão dos primeiros tempos. Torna-se hoje um sinal dos tempos, com seus desafios, mas também possibilidades. É convocação do Espírito a darmos à luz ao ‘nós eclesial’. Jesus não quis anunciar a Boa Nova como caminho solitário, mas convidou outros e outras a estar com ele neste caminho. A realidade nunca foi propícia, por isso é caminho, impulso, confiança. Somos chamados à sinodalidade, a reimaginar espaços, a resgatar os fundamentos do passado dialogando com os tempos atuais, a incorporar novos conceitos, novas estratégias, novas estruturas.
* Esta reflexão tem por base o artigo de Carmen Soto Varela – A sinodalidade. A arte de camiñar xuntas/os – publicada da Revista Encrucillada. Revista Galega de Pensamento Cristián. Galícia, Maio-Xuño, 2022.