“Jesus, porém, chamou-os e disse: Sabeis que os chefes das nações as dominam e os grandes fazem sentir o seu poder. Entre vós não deverá de ser assim…”
Mt 20, 25-26
Não é nada fácil caminhar juntos. Mas se trata da utopia do Reino de Deus cujo dinamismo libertador se fez e continua a se fazer presente entre nós no encontro transformador com Jesus Ressuscitado. Quando cada pessoa toma consciência de sua autonomia e igual dignidade e lugar na mesa da irmandade dos filhos e filhas de Deus, é preciso profunda conversão para caminharmos juntos sem cairmos em idealismos: importa queimar diariamente toda semente ou broto de egoísmo, de poder-dominação, de mecanismos de opressão de uns sobre os outros e de exclusão dos que não se submetem aos que defendem ideologias dominantes na Igreja e na sociedade.
Os Evangelhos não escondem de nós os conflitos entre os discípulos e discípulas de Jesus da primeira hora. Basta ler com atenção o Evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas ou João, os Atos dos Apóstolos, as Cartas de Paulo… os conflitos estiveram presente desde o início da caminhada da fé cristã, continuam e continuarão presentes. Os conflitos fazem parte da caminhada de pessoas que têm consciência da dignidade de ser sujeito, de ser filho ou filha de Deus. Os conflitos exigem o cultivo coletivo da conversão à Deus, da postura de oração, de escuta, de respeito mútuo, de reconhecimento da igual dignidade dos filhos e filhas de Deus, da busca da vontade de Deus para nós, da confiança na luz e na força da Divina Ruah, do discernimento e do diálogo contínuo como combustível para o caminhar juntos.
A utilização diabólica do poder-dominação e a legitimação de estruturas hierárquicas centralizadoras obstaculizaram no passado e continuam a obstaculizar hoje a força transformadora do Evangelho do Reino da irmandade, da justiça, da centralidade do amar-cuidar-servir. Certas leituras históricas sacralizaram e continuam a sacralizar o poder clerical na vida da Igreja. Dos formandos a quem já está ordenado na ativa. Tais leituras justificaram e enraizaram na vida da Igreja uma questionável concepção do sacramento da ordem, com perversa concentração de poder nas mãos de uma hierarquia de ministros ordenados – bispos, presbíteros, diáconos – com tendência monárquica patriarcal, que deturpou e continua a deturpar a compreensão dos ministérios na vida da Igreja. Quando qualquer ministério deixa de ser compreendido como um serviço à missão da Igreja Povo de Deus ele se sacraliza e se deturpa. Com tal concepção deturpada, os ministros ordenados, frequentemente, passaram a se conceber como sagrados, ou seja, como a única mediação histórica da vontade divina na vida da Igreja. Como se a voz do ministro ordenado fosse a voz de Deus. Desse modo, o Batismo foi perdendo a sua centralidade e o seu dinamismo de formar discípulos e discípulas de Jesus comprometidos com a missão do Evangelho. O povo de Deus foi perdendo a sua identidade, autonomia, criticidade e corresponsabilidade no ser a Igreja de Jesus Cristo e na missão que brota do Evangelho do Reino e da memória viva e atuante do Senhor Jesus, sempre estradeiro conosco.
É igualmente verdade que a força do fermento do Evangelho, iluminado pela práxis libertadora de Jesus, sempre suscitou profetas e testemunhas incômodas na caminhada da Igreja, como outrora Francisco de Assis, como hoje Francisco de Roma. Homens e mulheres que não temem andar com Jesus na contramão e, com o Profeta da Galileia, colocar-se a serviço do Evangelho do Reino de Deus presente e atuante entre nós. Em cada momento histórico, somos chamados a voltar às fontes, acolher a presença desconcertante do Senhor Jesus, deixar que a força do Evangelho da graça transforme nossos esquemas mentais e nos encoraje para romper com tudo que impede o frescor do projeto salvífico universal de Deus penetrar na vida da Igreja e em nossos corações. Como discípulos e discípulas somos chamados a buscar a dupla fidelidade: aos desafios do Evangelho e aos desafios de nosso tempo.
Jesus permaneceu fiel à beleza do Evangelho do Abba até o fim. Não cedeu nem diante das ameaças e perseguições dos poderosos nem diante da iminência da cruz. Deu a sua vida, pois, confiou na presença amorosa do Abba e na força e na luz da Divina Ruah. Ao ser ressuscitado pelo Abba, pela força do Espírito Santo, a Igreja de discípulos e discípulas encontra, na memória da vida de Jesus, o seu Caminho a seguir.
E nós, neste contexto de kairós, de chamado a conversão sinodal, nós que hoje somos a Igreja de Jesus Cristo – leigas e leigos, religiosas e religiosos, diáconos, presbíteros, bispos… – somos chamados a confiar na força criativa do Espírito Santo. Como Jesus e com Jesus, permanecermos fieis ao Evangelho e nos entregaremos confiantes nas mãos do Abba querido. Estamos a poucos dias de uma etapa importante do Sínodo sobre a sinodalidade na Igreja, depois de um longo processo de escuta. Somos interpelados pela busca sincera de comunhão na beleza da diversidade que compõe a mesa da irmandade, pela missão coletiva de anunciar-testemunhar o Evangelho do Amor e da Justiça e pela busca de participação de todas as batizadas e batizados, de uma forma corresponsável, na vida cristã, no amar-cuidar-servir na Igreja, na sociedade e na Casa comum.
Para avançarmos na concretização da sinodalidade na vida da Igreja importa assumirmos juntos, neste tempo de profecia e chamado à conversão a Deus e ao projeto do Reino, a coragem de romper com esquemas patriarcais e estruturas clericais que impedem a emergência da Igreja toda ministerial, Igreja de Igrejas locais, Igrejas em rede de pequenas comunidades de fé e partilha da vida, Igrejas de comunidades irmanadas pelo cultivo da centralidade da Palavra de Deus e pelo desafio de encarnar, desde os mais pobres e sofredores, em todas as periferias, o Evangelho da vida plena para todos, de mãos dadas na memória perigosa de Jesus e no combate diário a todas as formas de opressão e exclusão, no complexo contexto urbano e internético atual. Mas estamos conscientes dos desafios e urgências que temos pela frente? Que o medo do novo não nos paralise na busca da dupla fidelidade.
*Edward Guimarães é leigo, doutor em Ciências da Religião e mestre em Teologia da Práxis Cristã.