No dia 15 de agosto de 2021, SOLANGE DOS SANTOS RODRIGUES fez sua páscoa definitiva. Quebrando o protocolo de fazer colunas com temas mais gerais, quero homenagear minha amiga e comadre. Durante muito tempo, talvez até que eu também faça a minha páscoa, dificilmente não estarei em contato com algo que lembre esta mulher. Conhecemo-nos faz tempo e fizemos publicações juntos. Começo a escrever esta coluna justamente depois de olhar vários e-mails trocados com ela por conta de um seminário que vamos realizar sobre Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em uma parceria do Iser Assessoria com o Setor CEBs da Comissão do Laicato da CNBB. Na minha caixa de entrada, do dia 09/07 à 09/08, dois dias antes de sua partida, são dez e-mails, além dos jogados fora e os guardados.
Sim, assim era Solange. Dois dias antes de ser internada escreve preocupada com as atividades a serem realizadas. No funeral, nas Eucaristias por sua ressurreição e no encontro remoto do dia 22/08, não faltaram adjetivos para qualificar sua vida: cultivadora de amizades, lutadora incansável por justiça, sempre solidária, grande desprendimento, entre outros. Até algum reconhecimento de sua “iracúndia sagrada” quando percebia que algo não estava de acordo com o que acreditava. Até para verificar uma conta em um bar era extremamente meticulosa, e cobrava qualquer erro. Confesso que às vezes eu ficava até com vergonha. Mas verdadeiros/as amigos/as são capazes de reconhecer limites humanos sem desmerecer virtudes.
Uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Com refinado sentido de perfeição. Ela revisou minha dissertação de mestrado e deve ter trabalhado muito, pois todos os detalhes foram percebidos e nunca, nunca proponha alteração sem respeitar quem escrevia. No doutorado não tive coragem de pedir para ela, pois com certeza aceitaria e trabalharia mais ainda. Talvez, seja esta uma razão para ela não ter feito carreira acadêmica. Mas desconfio que não.
Conhecemos Solange em meados da década de oitenta do século passado. Ela estava terminando a graduação em Ciências Sociais e fazia monografia sobre CEBs. Embora oriunda de um bairro periférico do Rio, Jabour, onde apesar de não haver incentivo às CEBs havia agentes de pastoral comprometidos com os pobres. É uma das regiões mais pobres da cidade do Rio e ela era engajada nas lutas daquela região. Porém, quis estar perto de uma realidade onde as CEBs fossem parte de um projeto de Igreja. Assim, mediado pelo Pe. Domingos Ormonde, que já a conhecia, ela veio parar em Duque de Caxias/RJ, Paróquia de Xerém, chegando a morar por certo tempo em um bairro pobre chamado São Judas Tadeu, em uma casa de telhas. Ali começamos a conhecer outra grande virtude dela: a hospitalidade. Chegamos a dormir umas dez pessoas em sua casa por duas ou três vezes, éramos jovens na época. Depois acabou voltando para o Rio.
Chegou dirigindo seu carro, uma Brasília, fato que nos surpreendeu. Sua família não era rica, mas não passava por dificuldades. Éramos oriundos de famílias onde ninguém tinha carro. Contudo, aos poucos fomos descobrindo, apesar de nosso preconceito, que ela largou um bom emprego com ótimo salário, pois tinha formação em Química no colégio Pedro II, e passou a se apresentar como exilada e acolhida na diocese de Duque de Caxias, pois não queria fazer uma opção pelos pobres apenas com textos e assessorias, mas na prática de sua vida. E aí, a amizade foi crescendo.
Envolveu-se em trabalhos de formação e assessoria em Caxias. Fez parte de um dos programas que até hoje foi para mim o melhor que já participei: o Trairaponga. Programa de iniciação na fé que buscava dialogar com a realidade de forma inculturada, por isso o nome que os índios davam a parte da região que é parte do território da diocese em Caxias e São João.
Porém, foi se dedicando cada vez mais ao Iser Assessoria e colocou sua vida a serviço das CEBs. Acabou fazendo mestrado sobre as CEBs. Contudo, foi para melhorar o seu serviço e não para fazer carreira acadêmica. Também se dedicou a causa das juventudes, mas a nossa parceria foi mais com as comunidades.
Enfim, Solange gastou muita energia vital com sua família, agora no final mais com sua mãe, Dona Nice, com amigos e amigas de muitos lugares, com o seu trabalho até a última hora, e, sobretudo com os pobres e as CEBs que muito amava. Aqui na aldeia de Caxias ela tinha um lugar reservado sempre, onde comemoramos muitos aniversários. O último foi na casa dela no Rio, um pouco antes de começar a pandemia, e morreu no mesmo dia que um dos amigos desta aldeia: João Carlos. Fica a memória em nossas mentes e corações da amiga, madrinha e irmã, de uma mulher que sempre se preocupava com a vida de todos e todas. Que ela agora interceda por nós.