Mais um ano de existências, conflitos, projetos, sonhos, esperanças e desesperanças. Nos chegam memórias, sonhos realizados, alguns projetos frustrados ou impedidos de seguir por tantas questões, e tantas desgraças que estamos vivendo com as guerras, os sistemas neoliberais e a crise climática. Mas, dentre esse desespero, há também quem consiga conectar com algo muito profundo, que tende a resgatar o fôlego, o ar que nutre, as vidas que nos trouxeram e que honramos com nosso próprio viver, o sopro vital que nos faz continuar a caminhar.
As muitas tradições espirituais reconhecem esse fôlego vital e fecundo de muitas formas: a ancestralidade que se faz presente e impulsiona, os guardiões sagrados orientando desbloqueios e abrindo portais, os encantados sustentando a saúde integral de todo o cosmos, a divina ruah presente-passado-futuro, num fluxo contínuo de recriar e renovar a vida na direção de sua plenitude… E tantas mais formas de nos dizer que a vida está aí, que vale à pena, e que não estamos aqui por acaso… Há algo de pessoal, mas também de coletivo e misterioso que nos atravessa e nos conduz.
É uma profissão de fé. É dizer, mais uma vez, EU CREIO, um ato de fé que implica confiança, mas também envolvimento, reciprocidade, a cumplicidade em diálogo entre o humano e toda a sacralidade. É dizer – não estou só, não estamos sós, caminhamos em mutirão, o nosso sonho é coletivo.
O verbo ‘crer’ nos conduz ao verbo latino credere, que se origina da expressão cor + dare, isto é, dar o coração a alguém. Nosso querido João Batista Libanio nos lembra que o ato de fé é este ato de entregar a alguém o seu coração, entregar ao Sagrado, ao Amor Ternura, nosso ser mais profundo, oferecendo-lhes nossa liberdade num gesto de dádiva confiante.
Então, esse é um movimento sagrado que nos toma. Se chegou até você, confie, pois ele nos precede, nos carrega, e nos orienta. É um movimento que passa por cada uma de nós, passa por cada ser sagrado, por cada pedra. Sim, tudo que move é sagrado, e remove as montanhas, com todo cuidado… Esse movimento que nos atravessa nos pede respostas, sermos atentos e responsivos. Coloca o ato de fé em verbos encarnados, em uma dinâmica de entrega, de confiança, de compromisso vital. E, sendo assim, não é um ato a ser pronunciado ‘da boca para fora’, como dizem, mas a partir do mais profundo do seu ser, renovando e abarcando toda a sua pessoa, sua inteligência, suas escolhas, seus sentimentos, sua forma de ver e de viver a vida.
A sacralidade que se faz presente é movimento nos oferece mais um ciclo, mais uma roda, mais tempo histórico, um ano novo, um novo portal diante de nós.
Enquanto sonhos e projetos pessoais, vamos nos dando conta de que eles vêm de muito longe, e ecoam em muitos corpos, em muitas vozes, também em muitos silenciamentos. É caminho, não se dá de uma vez por todas. É estrada aberta, com etapas, paradas, desvios, retrocessos, retificações.
Na trajetória da tradição cristã, esse é um diálogo marcado pelo convite provocador de nosso ser mais profundo. Pertence à ordem da liberdade responsiva, que evoca a consciência, as escolhas, as experiências, as revisões da vida. Uma profissão de fé foi constituída pela comunidade cristã e assumida como continuidade e compromisso, como testemunho e resposta pessoal, já que foi formulada em primeira pessoa: Creio em Deus… E em Jesus Cristo… Creio no Espírito Santo…”
Esta fala da liberdade como condição. Não nos fala de imposição ou mesmo de uma repetição de palavras, como se a doutrina se transformasse magicamente em realidade. Mas, vejamos como apesar de ser proclamada em primeira pessoa, esta é feita em comunidade. Ainda retomando o mestre Libanio, dizemos “Eu creio”, porque “nós cremos”. A integração entre pessoa e comunidade é o fundamento. Não se trata de um monólogo ou de uma ação individualista, mas de um profundo respeito e reverência à sacralidade pessoal e que se constitui e se movimenta sempre em comunidade.
Nessa breve reflexão, pensemos mais uma vez sobre a dimensão fundamental do diálogo, dos encontros, das trocas, das escutas coletivas. Já sabemos que a dimensão pessoal está integrada à comunitária. São dialógicas, são dialéticas, uma informa a outra incessantemente, nos refazendo como pessoas e como coletivos em um movimento eterno e maravilhoso.
Talvez esteja aqui o ponto a nos dedicarmos mais atentamente nesse novo ciclo histórico: estarmos nos encontrando, juntos, dialogando, nos interpelando e criando em coletivos. Oportunizarmos a comum+união é o ato revolucionário em um tempo de isolamentos que adoecem coletivamente. Vamos em frente com os caminhos de intersecção de credos, de gêneros, de horizontes éticos, de utopias, construindo estruturas dialógicas de construção e desconstrução de projetos, propostas de atividades e avaliações constantes.
Michel Amaladoss nos diz que “O único jeito de se viver em conjunto num mundo pluralista é aprender a viver juntos como comunidade” (Promover Harmonia. Vivendo em um mundo pluralista. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 189). Claro que nem tudo que se diz dialógico e plural de fato é assim. Há posturas de convivência que não assumem o caminho dialógico mais profundo, nas quais as diferenças devem ser toleradas, mas não assumidas comunitária e socialmente. Neste caso, não há um senso de comunidade, e sim defesas particulares, sem responsabilidades coletivas.
A comum+união que anunciamos e já está por aí crescendo como trigo em festa por muitos campos no nosso chão e no mundo, é o de construir vínculos sólidos, comunitários, redes de apoio, escuta, sororidade, fraternidade. Reconhecer o pessoal e o comunitário, e trabalharmos nas trocas fecundas e na construção de novos significados.
Deixamos aqui um Credo que foi construído no III ENJEL, Encontro de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras. Que seja inspiração para este novo ciclo que nos é ofertado!
Credo da Espiritualidade Libertadora – Cremos com paixão
Creio no Sopro da Ruah Divina em ação resiliente e constante nas lutas em defesa da vida. Cremos com paixão
Creio na circularidade amorosa do Deus da vida presente nos Territórios do Bem Viver. Cremos com paixão
Creio no Deus Pai-Māe dos nossos ancestrais conectado e interligado em um com todos na nossa casa comum. Cremos com paixão
Creio na semente geradora de vida, gestada no feminino água, terra, fogo e ar que tudo transforma, e nos convida a semearmos esperançar no cotidiano das pessoas excluídas e marginalizadas. Cremos com paixão
Creio na unidade nas diversidades de ideias, crenças, modo de ser e estar no mundo, caminho de respeito e integração entre os povos. Cremos com paixão
Creio na Economia que inclui, dialoga com seus pares, fortalece a coletividade, respeita a vida do planeta, do território e das pessoas, sobretudo das mulheres e juventudes. Cremos com paixão
Cremos, como ensinam os nossos povos indígenas, que toda a natureza é sagrada e precisa ser tratada como mãe que é. Cremos com paixão
III Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras
Salvador/BA 30 de maio a 2 de junho de 2024