“Vamos trabalhar para reconciliar”(2ª parte)

Em nossa última coluna, caminhamos por esse tema, pensando um pouco sobre como assumirmos o verbo RECONCILIAR como processo de abertura para além dos grupos e pessoas que sentimos que falam a ‘mesma linguagem’. 

A cultura do ódio tem uma ‘pegada’ que nos atravessa em muitos campos, que é a da divisão. Nos tempos do povo da Bíblia, toda divisão é compreendida como diabólica, aquela energia que divide, que compara e hierarquiza, que separa e segrega, uma energia que gera contrariedades, mas também violência e eliminação das alteridades. Sim, precisamos estar bem conscientes de que ela também está aqui, dentro de cada uma, de cada um de nós, pois não vivemos isolados, somos filhos de tempos em que a divisão, a meritocracia, a concorrência, se tornaram status, identidade e moeda de troca para sobreviver. 

O desafio atual pede para não apenas tomarmos consciência de que não estamos fora desse processo, que contribuímos para ele; mas também de não pararmos em uma avaliação que nos incapacite para o diálogo fecundo. Enfim, precisamos passar do eixo diabólico para o eixo simbólico. O símbolo é justamente o que favorece a integração, o olhar que soma, que adiciona, que considera, que é aberto a novas visões e saberes. 

Em nosso campo de ações pastorais, pedagógicas, missionárias, como sentimos essa tensão? Você percebe a presença de falas de exclusão, de proselitismo, de ironia, quando se trata de expressões ou tradições religiosas não tão compreendidas ou aceitas no mundo atual? Como você e sua comunidade reagem à cultura que fomenta o ódio, a maledicência, as hierarquizações espirituais?

Viemos, nesta coluna, falando sobre a Espiritualidade Libertadora como um caminho de comunhão, integração, ecumenicidade vivencial. No entanto, também estamos cientes da imensa dor que atravessa o peito do Amor Divino com falas e atitudes que tomam a própria imagem de Deus, do Sagrado, para fundamentar ideias e ações de ódio, de exclusão, de banalização e preconceitos. 

Então, tomada a consciência de que a cultura do ódio também nos abarca, mas que não vamos estacionar nela, seguimos na direção de uma cultura de paz. Como isso chega no seu coração neste momento? A partir da sua tradição religiosa, qual o chamado que o Amor Divino vai semeando em você? Não é preciso ser adivinha para arriscarmos que o chamado é para o amor, para a comunhão, para a inclusão e, portanto, para buscar os caminhos de diálogo e reconciliação. 

Se pensarmos em como tudo começou em nosso desabrochar espiritual, vamos nos emocionar com o encontro mais forte de nossas vidas: o encontro entre Deus e a humanidade. Esse não é um encontro apenas em um lugar do mundo ou momento histórico. Deus se autocomunica de muitas formas, fala nos corações, nos momentos históricos, nos fenômenos da natureza. É um amante que revela seu Amor transbordante sem cessar. 

É o que chamamos de mistagogia. O mistério Divino está presente, se revelando, se apresentando, orientando, conduzindo. Tudo no gerúndio mesmo, porque é puro movimento. Se o Amor Divino se apresenta a toda a Criação, por que será que os grupos humanos se confrontam como se tivessem alguma forma de exclusividade?

Apresentado esse pequeno princípio, pensemos juntas duas possibilidades na conjugação do verbo RECONCILIAR entre as muitas espiritualidades:

Podemos, então, substituir o singular pelo plural, buscando uma linguagem inclusiva. Em vez de a Igreja, podemos falar a Igreja Católica, que já é uma forma de identidade e diálogo. Podemos falar sempre no plural – espiritualidades, tradições, expressões religiosas, comunidades. 

Uma linguagem bem presente nas comunidades é fazer referências às fraternidades em comum, por exemplo, ‘as irmãs e irmãos da comunidade evangélica’. 

Cada uma é especial, são escutas do Amor Divino em lugares, tempos, culturas. O que será que cada uma tem a dizer? 

Podemos convidar irmãs e irmãos para visitar nossa casa, nossa comunidade, e fazer o mesmo. Construir intimidade, momentos de convivência, assumir juntos metas sociopolíticas, pensar juntos em ações pastorais, educacionais, culturais, políticas, litúrgicas. 

A atitude de Jesus às mesas nos fala de uma comensalidade aberta, não exclusiva. A sacralidade é justamente o sentar juntos. O altar e as oferendas são as vidas dos presentes. 

Nesse diálogo que constrói intimidade, vamos encontrar o mais profundo de cada irmã, de cada irmão. Vamos entendendo o significado de símbolos, de crenças, de falas e, também, de incompreensões, de contrariedades. 

Qual o movimento mais profundo que o Amor Divino te pede? Escute, faça silêncio nas tagarelices da mente e deixe a voz sagrada ecoar. Ela vai te falar de amorosidade de várias formas. Vai te falar de curar o que incomoda. Vai te falar de integração, pois tudo na vida é complexo e impermanente. Vai te falar de entrega e confiança na experiência amorosa. Vai te falar de humildade, de olhar nos olhos, de sentir junto. Fique nessa energia, ela é a semeadura amorosa que nosso tempo tanto precisa. Sim, pode ser diferente, vamos tentar?

Para nos ajudar nesta experiência mistagógica, uma canção da MPB, de Ronaldo Bastos e Beto Guedes, pode nos conduzir leve e profundamente… aproveitemos seu embalo sagrado…

Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas com todo o cuidado, meu amor
Enquanto a chama arder, todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa no azul pintado pra durar

Abelha fazendo o mel, vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu, o pedido que se pensou
O destino que se cumpriu de sentir seu calor e ser todo
Todo dia é de viver para ser o que for e ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho é  mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver 

No inverno te proteger, no verão sair pra pescar
No outono te conhecer, primavera poder gostar
No estio me derreter pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu de sentir seu calor e ser todo

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