Viver a espiritualidade libertadora é ser rede de solidariedade e ética

Deus está em você para mim e em mim para você.
Por isso para encontrarmos Deus, precisamos uns dos outros.
A comunidade de fé é para nós o lugar
onde encontramos o Cristo ressuscitado uns nos outros”
Bonhoeffer

Falar de espiritualidade libertadora é falar de fé-vida integradas, caminhando de mãos dadas. Como dizia João Batista Metz, a fé reúne quatro dimensões: a existencial, a hermenêutica, a práxica e a escatológica.

A espiritualidade libertadora nos fala da dimensão existencial, de acolher os sinais, os clamores que vem da terra, da gente. Acolher é ser sensível, é criar espaços de convivência, de proximidade e de troca. Acolher é engajar-se, é assumir a causa de cada irmã, de cada irmão, da Mãe Terra e suas criaturas. Acolher é reverenciar jeitos, formas de rezar, de se relacionar com o divino. Acolher é também aprender a aprender, deixar-se modificar, re-pensar, fazer novas escolhas.

A espiritualidade libertadora também possui uma dimensão hermenêutica, interpretativa e dialogal. Ela deseja compreender, escutar e falar, intervir e receber sugestões e avaliações constantes. Ela está em atitude permanente de abertura e revisão. Deseja compreender a experiência de fé e interpretá-la à luz dos textos sagrados, da circularidade da comunidade, dos fatos históricos, da luz que vem do passado, dos saberes presentes e dinâmicos.

Nessa reflexão, desejamos focar na terceira dimensão apontada por nosso querido teólogo, a dimensão práxica. Falar da dimensão existencial e da dimensão hermenêutica nos convoca ao olhar, mas também às consequências do olhar que sente junto e se solidariza. Ou seja, a fé nos leva a respostas ativas, concretas, compromissadas com as alteridades, compromissadas com o projeto de Deus revelado pelo povo da Bíblia, pelas comunidades cristãs ao longo da história.

Se há um caráter que dinamiza e que também abala nossa fé é a própria história. A revelação se dá na história, mas também é revolucionada por ela. Não é estática e, portanto, as respostas são sempre novas, exigem novo pensar e novo agir, de acordo com cada situação. Por isso é práxica, porque integra o pensar e o agir, e não podemos separar um destes dois elementos sem que nossa resposta se torne parcial ou inadequada.

Quando vivenciamos a espiritualidade libertadora é ela mesma quem nos conduz, ou seja, é o Mistério que nos conduz, é um caminho que vai integrando mística e vida. Por isso mesmo, esse caminho nos abre à escuta atenta, à percepção dos sinais de vida e de não-vida, aos apelos que nos chegam. E como ficamos, cada um de nós, nesse caminho? Como aqueles que fazem a mediação, que se colocam como ponte, como vínculo, como aproximação, como quem busca as estratégias de intersecção.

A experiência mística do cristianismo é a experiência de um Deus encarnado, de um Deus que age e trabalha no mundo, de um Deus que se relaciona e conta com tudo e todos como co-criadores no Amor.

O teólogo que nos inspira, Metz, ainda nos fala da dimensão escatológica da fé, a dimensão utópica, que vai além da história. Nossa experiência histórica é limitada, condicionada, o que nos situa, mas também nos angustia. A fé cristã nos aponta para uma dimensão que dá sentido ao hoje, mesmo que incompreensível e dilacerante. Contudo, não podemos confundir a dimensão da esperança escatológica com uma fuga da realidade, com indiferença ou ausência de compromisso com a história presente e determinada. Ao contrário, a fé nos posiciona mais radicalmente ao compromisso, à vivência da espiritualidade libertadora em cada tempo e lugar.

Sim, estamos diante de uma tensão entre a história e o sofrimento, entre o desejo de humanização e as condições estruturais. Esse é o clamor que nos chega e convoca a atuarmos como redes de solidariedade, construindo hoje a utopia de uma vida de paz, amor e justiça, sem exclusão, e com a instauração progressiva de uma ética global.

Não apenas sonhamos, mas profeticamente agimos e apontamos para uma nova realidade, determinada pelo sonho que nos embala e orienta.

O muro caiu, olha a ponte
da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
abraça o dia de amanhã, olha aí.
Paulo César Pinheiro

 

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