Por Pe. Paulo Sérgio Bezerra*
1. A tensão do Êxodo
A quaresma remete o povo da Nova Aliança ao itinerário percorrido pelo povo da Primeira Aliança, com Moisés, no deserto. Itinerário marcado pela iniciativa de Deus: “vi a opressão do meu povo no Egito…e desci para livrá-los…”(Ex 3,7-8). Mas, também, fortemente marcado pela resposta humana: “depois, Moisés e Aarão se apresentaram ao Faraó e lhe disseram: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: deixa o meu povo sair, para que celebre minha festa no deserto” (Ex 5,1).
O povo da Nova Aliança retoma, com Jesus de Nazaré, este itinerário paradigmático. Deus, novamente, toma iniciativa: “Muitas vezes e de muitas formas, Deus falou no passado a nossos pais por meio dos profetas. Nesta etapa final nos falou por meio de um Filho, a quem nomeou herdeiro de tudo, por quem criou o universo” (Hb 1,1). A disponibilidade humana, aqui também se faz presente: “Por isso diz ao entrar no mundo: não quiseste sacrifícios nem oferendas, mas me formaste um corpo…Então eu disse: aqui estou, vim para cumprir, ó Deus, tua vontade” (Hb 10,5-7). A iniciativa divina sempre é a salvação integral do seu povo. Ouso dizer: o ser humano é o “objeto de desejo” de Deus. Da mesma forma que Deus é a eterna busca do mais íntimo e dilacerante desejo do ser humano. Assim, iniciativa divina e resposta humana escrevem uma história de êxodo e, cheia de tensão.
Foram 40 anos de deserto onde ecoaram reclamações de Deus e do povo: “se hoje escutais a voz dele, não endureçais o coração como quando o irritaram, no dia da prova no deserto, quando vossos pais me puseram à prova e me tentaram, embora tivessem visto minhas ações durante quarenta anos. Por isso me indignei contra aquela geração, e disse: sua mente sempre se extravia e não reconhecem meus caminhos. Por isso, irado, jurei: não entrarão em meu descanso” (Hb 3,7-12; Sl 94, 8-11). A espiritualidade quaresmal é feita de tensão porque é uma espiritualidade de deserto. A pobreza do presente, suas contradições e limitações, contrasta com a riqueza do futuro, suas possibilidades e horizontes. Na verdade, pela vida afora, vivemos a espiritualidade quaresmal…se nossa vida é diálogo ininterrupto com Deus! Apenas a vivenciamos mais intensa e liturgicamente entre a quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Ramos. Então, a “Campanha da Fraternidade ilumina de modo particular os gestos fundamentais desse tempo litúrgico: a oração, o jejum e a esmola” (cfr. CNBB, CF/04 Manual, p. 11).
2. O paraíso re-encontrado.
A espiritualidade judaico-cristã é o processo pessoal e comunitário da experiência mística do mito do Éden: “eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim, à brisa do dia, e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim” (Gn 3,8). No esconde-esconde da vida, Deus sempre vai atrás dos seres humanos porque, ouso dizer de novo, o ser humano é o “objeto de desejo” de Deus. Embora tenha colocado a leste do parque de Éden “os querubins e a espada flamejante que oscilava para fechar o caminho da árvore da vida” (Gn 3,24), Iahweh Deus deixou uma porta aberta: “o Senhor Deus disse à serpente: …ponho hostilidade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela: esta ferirá tua cabeça quando tu ferires seu calcanhar” (Gn 3,14-15). Ao longo da aventura da vida vamos tenho a experiência paradisíaca desse envolvimento com Deus. Tenho impressão que esses “querubins com espada flamejante oscilando para fechar o caminho da árvore da vida” sejam o próprio juízo de Deus inscrito na natureza humana ou, a própria consciência que cada um deve ter de si mesmo, dos outros e do universo. Então, há momentos que as “espadas flamejantes” se erguem possibilitando a entrada no paraíso re-encontrado. Há outros que elas oscilam fechando o acesso quando, de novo, a mão de Adão e Eva querem tocar o fruto proibido. A espiritualidade quaresmal é feita do envolvimento amoroso entre criatura e Criador no “esconde-encontra-esconde-revela” cujo espaço geográfico é o processo histórico.
3. A refeição do amor
A espiritualidade quaresmal marcada, no Brasil, por Campanhas da Fraternidade e os gestos pascais por elas provocados, é o passo necessário para a entrada na “casa da aldeia de Emaús”. São as predisposições necessárias para entrar na “sala do casamento”: “então o reinado de Deus será como dez moças que saíram com suas lamparinas para receber o noivo…” (Mt 25,1s). Nesta casa acontece a experiência pascal do estar à mesa para repartir o pão e beber da taça da aliança. Pão da luta, do sacrifício e da entrega cotidiana da vida nas lutas pessoais contra o egoísmo e das lutas comunitárias contra as históricas opressões. Pão da caminhada pelo deserto da vida, o maná! Vinho da festa, da alegria, da amizade e do espírito liberto para a aliança, para a refeição do amor.Vinho da vitória do caminho percorrido! Assim, com o noivo já presente, cessam o jejum e a esmola (são exercícios de êxodo). Permanece, no entanto, a oração (condição de manutenção do processo pascal). Agora, não mais como grito que sobe aos céus, mas como diálogo da mais intima união entre Aquele que sempre toma a iniciativa e todos aqueles que se dispõem a responder às provocações do amor. Terminamos os exercícios quaresmais entramos no Tríduo Santo para o encontro com ele, “ao entardecer desse dia, o primeiro da semana”…(Jo 20,19). A espiritualidade quaresmal pode ser chamada também de “espiritualidade da aliança”; ela vai além, muito além de todas as libertações históricas…nos leva para o horizonte de Deus!
*Pe. Paulo Sérgio Bezerra é pároco da Paróquia Nossa Senhora do Carmo em Itaquera e colabora com as comunidades eclesiais de base e movimentos populares na Zona Leste de São Paulo/SP.