A mistagogia é um dom, um presente oferecido, um tesouro da sabedoria dos primeiros tempos das comunidades cristãs e de tradições religiosas não cristãs, alinhadas na sintonia de caminhar na abertura ao Amor Divino que se revela incessantemente.
Segundo Galilea nos fala dela como o fundamento da espiritualidade, como a água suave que mantém a relva molhada, a umidade do gramado, que está ali sustentando tudo e que, sem ela, a secura vai crescendo pouco a pouco. Em nossos campos de ação, de convivência, de relacionamentos, o que seria essa ‘água’ que embebe, nutre, sustenta, harmoniza, fecunda? A mistagogia é esse olhar que percebe o fio dourado que tudo alinhava, essa água que se faz presente como chuva mansa e perseverante.
Em nossos contextos relacionais, muitas vezes sentimos a dificuldade em sustentar projetos comunitários, sociopolíticos, de luta pelas justiças e por vida plena. Falta água? Mesmo quando observamos projetos com ideais mais simples, mais próximos, o esperançar caminha – lado a lado com dificuldades –, como resistência teimosa. Onde está a água?
Um projeto político, um projeto social, educativo, econômico, cultural, pode diagnosticar estruturas, avaliar possibilidades e traçar estratégias. Quando fundamentados em aspectos históricos, estes constroem estruturas aparentemente sólidas. Mas, a história vem sendo abordada por muitas ventanias, a partir de ideologias que não respeitam estruturas e nem mesmo as consideram como legítimas. Nessas tantas situações, como encontrar água para prosseguir na resistência teimosa?
A mistagogia nos oferece essa fonte, ela nos coloca no caminho, nos diz que ele nos antecede, que persiste e persevera, mesmo que nossos olhares históricos procurem não ver seus sinais: as relvas molhadas, flores e frutos. Ela nos faz olhar através das estruturas históricas e considerá-las não como absolutos pontos de chegada, mas como parte do longo caminho ao qual fomos convocados. E ainda, nos faz perceber que o caminho atual vem sendo construído por tantas e tantas gerações que nos trouxeram. Isso mesmo: não paremos nas estruturas históricas e visíveis, mas façamos destas ferramentas de análise, de reflexão, e também de criação de novas estratégias e atitudes proféticas.
Como já vimos em artigos anteriores, o mundo moderno condiciona as relações e estruturas ao seu modo, e uma das consequências desse condicionamento é a perda da memória histórica e coletiva. Uma das consequências graves dessa perda é o crescimento do sentimento de solidão e o individualismo, que afetam a consciência pessoal, as relações humanas, ambientais, e também as relações com o Amor Divino.
Precisamos estar conscientes de que esse processo é alimentado por uma estrutura que visa desumanizar, desterritorializar, isolar cada pessoa de tudo, de todos, da história e também de sua relação com o Mistério Divino. Trazemos aqui este tesouro que está em nossas mãos – a mistagogia – como uma inspiração, mas principalmente como uma atitude profética e libertadora.
Não podemos cair na armadilha do julgamento individual, como se as atitudes de fechamento, individualismo, isolamento, fossem de única responsabilidade pessoal. Esse julgamento é precipitado e nos afasta ainda mais umas das outras.
A mistagogia é espiritualidade do caminho. Nele trilhamos caminhos já percorridos pelas tradições religiosas, mas ao realizar a sua trajetória, cada pessoa e cada comunidade são renovadas em seu diálogo com o Amor Divino.
A perspectiva de caminhada supõe dinamismo, renovação incessante e criativa, que dialoga com o tempo, com a história, com novas relações e situações que a vida apresenta. Esta perspectiva nos abre à compreensão da mistagogia como processo e não como imposição. Lembremos que uma das primeiras expressões com que designavam os cristãos, já na primeira metade do século I foi a de “seguidores do Caminho” (At 9,2). Nos reconhecemos como participantes de um caminho que nos precede e unidos aos caminhantes pelos vínculos da fidelidade e da continuidade criativa: somos povo de Deus a caminho.
Outra dimensão que dialoga com esse vínculo sagrado é nos sabermos comunidade a caminho, comunidades históricas a caminho. Somos, mais uma vez, mediadores, pontes de diálogo e interlocução. O projeto histórico é percebido como ferramenta, como mediação. Ou seja, não é o projeto que define o caminho, pois a centralidade conduz a novas práticas mistagógicas de abertura ao Mistério Divino que nos conduz, orienta, alimenta.
Quais serão os critérios de discernimento nesse caminho? Serão aqueles que comunicarem o movimento constante e criativo da experiência do Amor Divino, ou seja, procuremos sempre discernir onde e como a caminhada humana e espiritual vai ao encontro da comunhão libertadora consigo mesma, com os outros e com todo o universo.
Portanto, o que chamamos de atitude mistagógica é também a aprendizagem desse discernimento, e esta acontece na comunidade: a capacidade pessoal e comunitária de acolher, experimentar, interpretar, avaliar, escolher, assumir na própria vida o convite que a fé lhe faz.
Água, água, água sagrada!
Água que vem do seio da terra
Trazendo consigo divinos segredos
Água que vem banhando as sementes
Trazendo consigo da vida o enredo
Água que vem caminhos traçados
No fado do povo desesperançado
Água que vem, mensagem celeste
Mistério guardado em caminho agreste
Zé Vicente