Por Luis Miguel Modino
A primeira vez que conversei com o Padre Justino Sarmento Rezende, ele me falou que antes de ser salesiano já era indígena. Com o tempo fui descobrindo que essa afirmação não era gratuita e que ele pode ser considerado como um construtor de pontes entre duas cosmovisões, duas formas de entender a vida, bem mais próximas do que muita gente poderia pensar: o mundo indígena e o mundo cristão.
Desde sua condição de indígena tuyuka, deixa claro que o Sínodo “se coloca do lado dos mais ameaçados, que são os povos amazônicos”, e que “é uma grande oportunidade de sermos conhecidos pela Igreja toda”, mesmo que ainda falta “entrar nesse espírito do Sínodo, falar nas celebrações”. Ele vê como um desafio criar uma Igreja com rosto indígena, mas para isso os missionários “precisam criar novas atitudes de convivência com os povos indígenas”, e ao mesmo tempo “estar mais presente na vida do povo”.
Um dos desafios assumidos pelo Padre Justino é ajudar as vocações indígenas a entender como assumir sua condição de indígenas e de religiosos, religiosas ou sacerdotes, um elemento presente no Instrumento de Trabalho. Ele sempre insiste na necessidade de uma conversão por parte de quem chega nas comunidades indígenas para anunciar o Evangelho. Seu profundo conhecimento da realidade pode ser de grande ajuda neste momento do processo sinodal, sobretudo em vista de uma assembleia sinodal, onde deve estar presente, pois desde a elaboração do Documento Preparatório foi um dos assessores, que vai se enchendo de desafios.
Como indígena, independente, da sua condição de padre, de salesiano, a menos de dos meses do início da assembleia sinodal, como se situa diante do Sínodo para a Amazônia?
O Sínodo para a região Pan Amazônica, para um indígena tuyuka, ele é muito importante no sentido de que a Igreja, de modo bem claro, decidido e profético, se coloca do lado dos mais ameaçados, que são os povos amazônicos, não só indígenas, mas também ribeirinhos, povos das estradas, também dos grandes centros urbanos. Então a Igreja, ela se torna voz desses pequeninos, no sentido social, pois a grandeza não está na relação entre os poderosos e as pessoas humildes, a grandeza humana, ela continua existindo nessa grandeza das culturas, dos povos, que a Igreja quer mostrar.
Como indígena vejo que é uma grande oportunidade de sermos conhecidos pela Igreja toda, para que as dioceses, as congregações, e nós próprios indígenas redescubramos o grande valor que nós temos no mundo e os valores que os povos apresentam numa perspectiva de contribuir para fazer ecoar a voz indígena em defesa do mundo, em defesa da ecologia, na questão dos rios, florestas, as grandes tradições, pequenas tradições também do dia-a-dia. Para nós indígenas, é significativo esse momento sinodal. Muitos indígenas contribuíram e agora o trabalho vai se afunilando. Os povos indígenas estarão lá presentes, mas conectados com as bases, com os sonhos, com as propostas das comunidades.
São essas vozes que devem ressoar nos corações dos bispos, eu já falei no encontro que tivemos em Brasília, 24 bispos que vão para o Sínodo e agora, no final do mês, no encontro em Belém, vamos repetir esse apelo de que os bispos, como pastores, não esqueçam daquilo que os povos indígenas estão desejando. Não pode simplesmente fazer escutas partindo de seus próprios interesses pessoais, mas eles devem ser a ressonância e porta-vozes dos grandes desafios que atingem os povos indígenas.
O senhor agora mora em São Gabriel da Cachoeira, o município com maior porcentagem de população indígena do Brasil, inclusive tem visitado algumas comunidades do interior recentemente. O que seus parentes, aqueles que vivem nas comunidades, na base, estão falando ao respeito do Sínodo?
O Sínodo ainda, como eu dizia no início, muitos terão muita dificuldade de entrar nesse processo de conhecer o Sínodo. As comunidades que tiveram contato através de seus catequistas, seus missionários e missionárias, os sacerdotes que atuam nas comunidades indígenas, porque deles depende muito, lá na ponta, entender o que é o Sínodo. Onde teve esse trabalho de comunicação, de repasse sobre os trabalhos do Sínodo, eu vejo e escuto que há uma grande esperança de que a Igreja se comprometa a valorizar os sonhos dos povos indígenas.
Justamente trabalhar diferente no contexto de São Gabriel da Cachoeira, que tem movimento indígena que trabalha com a questão da autodeterminação, o fortalecimento das línguas, das culturas, a revitalização dessas tradições. A Igreja, diocese de São Gabriel, que vai crescendo com outras congregações, muitos indígenas nas universidades, estudando diversos cursos. Tudo isso mostra que a Igreja precisa ser diferente. Eu, como sou daquela região, eu consigo mostrar onde eu estou presente, nesses lugares da cidade, do interior, a importância do Sínodo, a importância que nós temos para o mundo. Mas não basta ter essa consciência da importância, precisa mostrar quais são as nossas contribuições.
Isso que falta ainda fazer, poucas pessoas conseguem levar em frente no dia-a-dia, entrar nesse espírito do Sínodo, falar nas celebrações. Então, isso que precisaria fazer, mas eu vejo que as pessoas de São Gabriel, e lá no interior, Iauarete, Pari Cachoeira, Taracua, onde eu passo, eles vivem perguntando, padre, e o Sínodo, como é que está? Que é que vai tratar? Vai vir coisas boas para nós, coisas melhores na nossa pastoral, na questão dos ministérios? Eles têm uma expectativa muito boa e grande diante do Sínodo. Por isso que de minha parte estou consciente de estar contribuindo com nossos bispos que vão estar no Sínodo, para que a gente procure corresponder a essas expectativas.
Não dá mais para pensar na região do Alto Rio Negro como uma região grande, com muitos avanços, porque tem regiões em nossa Amazônia que não está nesse nível de ter tantas pessoas com formações acadêmicas, com tanta organização indígena, de jovens, mulheres, lideranças, pajés. Nossa região de São Gabriel, ela tem essa vitalidade, esse dinamismo que muitos lugares não tem. Por isso que eu disse para Dom Edson, que é bispo da nossa diocese que tenha força, coragem, de ser voz dos povos indígenas do Rio Negro, vinte três povos. Nós vamos estar fazendo essa ponte durante o Sínodo.
O Instrumentum Laboris diz que a Igreja percorreu um longo caminho, que deve ser aprofundado e atualizado até chegar a ser uma Igreja com rosto indígena e amazônico. O senhor fala que precisa uma Igreja diferente, o que está faltando ainda para que a Igreja assuma esse rosto indígena e amazônico?
Eu repeti várias vezes, nos meus escritos, nas minhas falas, e vou insistindo nessa tecla. Enquanto a Igreja não reconhecer o indígena, os povos indígenas como pessoas capazes de assumir a proposta da Igreja e contribuir com a proposta em cada cultura, vai ser muito difícil. Quando digo que a Igreja deve assumir o rosto indígena, os padres sinodais também dizem que a Igreja deve ir ganhando ou criando rosto indígena, é justamente para dizer que os missionários, as missionárias, bispos, sacerdotes não indígenas, precisam criar novas atitudes de convivência com os povos indígenas, em conjunto com eles criar novas metas pastorais. Isso já se faz na região do Rio Negro, mas falta concretizar mais ainda.
Precisaria sair desse campo ou dessa fase discursiva para a prática. Isso perpassa por várias ações eclesiais, ações pastorais, na catequese, quantas vezes sonhamos fazer uma catequese indígena, trabalhando temas indígenas, temas de espiritualidades indígenas, sobre crenças, cerimonias, rituais. Não só para os sacerdotes, missionários, bispos, falta isso, mas para nós mesmos indígenas, nós chegamos a essa consciência do valor, não só isoladamente, como Igreja, mas também influenciados por essas mudanças históricas do Rio Negro, do movimento indígena, das organizações não governamentais que também vem incentivar o estudo das culturas, a valorização.
Eu, de minha parte, quando penso em uma Igreja com rosto indígena, vai nessas novas atitudes, novas práticas pastorais assumidas por indígenas leigos, homens, jovens, mulheres, fazendo que outro modo, aquilo que eles já fazem muito bem, as celebrações recheadas com os cantos nas línguas próprias, fazer as leituras, a Bíblia com sua língua própria. Isso, nós não chegamos a fazer ainda, falta um investimento humano e material para que cheguemos a isso. Tem traduções da Bíblia feitas no passado, aqui na parte do Brasil, traduções do Evangelho de São Marcos. Do lado colombiano são mais, tem a tradução de todo o Novo Testamento, na área de fala em língua tukano se utiliza. Também os baniwa, com suas traduções através de seus pastores e pastoras, utilizam, ouvem, leem, a Palavra de Deus em suas línguas.
Esse rosto indígena da Igreja também equivale dizer que as comunidades devem se organizar de tal maneira que apareçam mais os valores, que esses valores nossos indígenas, enriqueçam os valores da Boa Nova de Jesus. Uma complementa a outra, também não se pode dizer que o anuncio da Boa Nova de Jesus, que chega a través dos missionários e missionárias que vem com rosto próprio, missionários italianos, espanhóis, mesmo aqui do sul do Brasil, que vem com suas estruturas culturais. Por isso também para eles é mais difícil inculturar-se em uma cultura, aprender as línguas indígenas onde está trabalhando, aprender os costumes bons. Isso que daria o rosto indígena, o rosto da Igreja indígena, mas é um trabalho. Eu mesmo assim, comigo, eu penso bastante como poderia ser essa Igreja com rosto indígena, ou é apenas uma ideia, um sonho?
Precisaríamos criar grupos indígenas para concretizar esse ideal do rosto de uma Igreja indígena, assim outros também, Igreja com rosto caboclo, feminina e as discussões vem. É um desafio para nós, tem muito trabalho para fazer, mas precisaria ter uma organização, de padres, missionários indígenas, para pensar isso. Se não tiver um grupo pensando, de forma organizada, não vai avançar muito, não. Precisa ter metodologias, pessoas para pensar nesse rosto indígena, como deveria ser. Porque se não o Sínodo vai discutir, aprovar essas ideias, mas depois virá esse grande desafio, quem vai fazer isso? Como vamos fazer isso? Esse trablaho seria post sínodo da Amazônia.
O senhor fala de padres indígenas e a gente vê que cada vez tem mais padres, religiosas indígenas, que fazem parte das diferentes congregações. Inclusive na sua congregação tem vários padres e religiosas indígenas. Pensa que vocês estão assumindo protagonismo na hora d toma de decisões dentro de suas congregações e dentro da Igreja da Amazônia?
O fato desse surgimento das vocações indígenas e o aumento do número de sacerdotes indígenas, de religiosos e religiosas nas congregações ainda não é suficiente para a gente pensar em uma Igreja com rosto indígena, porque não basta ser indígena. Precisa ter ideais, instrumentos, estruturas humanas, para avançar nesse campo, não basta ser indígena para gostar da cultura indígena, mas precisa gostar de ser indígena, de ser padre, irmã, irmão, indígena. Quando a gente gosta, aposta nesses novos modos de ser e de fazer Igreja, ai que precisa avançar.
Nós fizemos, quando Iaurete completou 90 ano, nós fizemos encontro de padres indígenas, salesianos. E a nosso preocupação era justamente isso, que nós estamos fazendo ou estamos sendo como indígenas nas nossas congregações, na Igreja donde nós saímos, do Rio Negro? Quais são nossas contribuições? Inclusive fizemos a escuta com os representantes das pastorais de Iaurate, o que vocês pensam de nós indígenas sacerdotes, parentes de vocês? O que eles desejam é que nós, quando nos tornamos padres, sejamos mais próximos, não somente no sentido geográfico, senão mais conhecedores das nossas culturas mais comprometidos com a causa indígena, ser mais colaborativos nas formações com eles, não deixar que só os missionários vindos de fora, estejam ali comprometidos com os povos.
De certa maneira eles começam perguntar, e os nossos parentes, onde estão, o que eles estão fazendo por nós? Essa proximidade, atuação por períodos, depende de cada congregação, é muito importante. Nós temos que estar ali com eles, convivendo, aprendendo, mostrando, sonhando com eles, o que é ser um indígena padre. Eu, graças a Deus, por sorte ou pela compreensão dos meus superiores, desde que fui ordenado padre em 94, tive essas oportunidades de estar vivendo junto com meus parentes indígenas, apanhando com eles, eles me chamavam a atenção, eu também queria avançar demais em certas coisas. Ai aprendi que não dá para eu querer ter sonhos muito rápido, querer fazer logo, o povo vai no ritmo dele. O ritmo de compreensão sobre a evangelização é outro ritmo. Um dia eles chegam, ai inverte e dizem, padre, nós vamos celebrar a partir de nossas culturas, línguas.
As irmãs a mesma coisa, eu estava imaginando que as irmãs de várias congregações religiosas, deve passar de trinta irmãs salesianas, franciscanas. Elas também devem mostrar para nossos parentes outra maneira de ser religiosas. Só que muitas há tendência à acomodação, o estilo de vida sacerdotal, religiosa, do modelo não indígena é muito fácil, ele é muito forte. Tem especialistas que falam da descolonização da mente. Eu quando fui para Marauia, com os ianomâmis, eu senti muito forte isso, eu estava achando que não tinha tanto mentalidade colonial, em querer ser melhor, mesmo falando da importância das culturas, das cerimonias rituais, eu tive que fazer um trabalho interior muito forte de tirar essa visão muito ocidental. Até que eu não tirasse essas ideias estava muito difícil para mim ficar.
Imagine para os salesianos, meus irmãos mais jovens que não conseguem fazer esse trabalho, não estão inseridos diretamente nas comunidade indígenas. É muito difícil para eles sonhar como poderia ser. Por isso que eu digo para meus irmãos salesianos, nesses encontros de religiosos, se nós queremos fazer diferença, precisamos mergulhar naquela cultura. Esse é o desafio, como fazer. Cada congregação vai criando metodologias para mudar isso. Por exemplo, nós queremos assumir o trabalho de fazer encontros periódicos, fazer reflexão, estudos, sobre nossa vida indígena. Estamos planejando fazer contribuição nossa, indígenas, conteúdos, categorias, conhecimentos, desde a formação inicial dos salesianos até as etapas da teologia. Quem pode fazer isso somos nós mesmos, padres indígenas. E depois fazer essa formação continuada, de avaliação de nossas atuações pastorais.
Tem salesianos indígenas que estão atuando nas cidades, então tem que se preocupar com eles. Como está vivendo a sua vida indígena? Qual é a contribuição indígena para essa obra onde você está atuando? Ter essa clareza de que você que é indígena, é salesiano, como que você contribui com essa sociedade brasileira? Nós estamos refletindo bastante, o que a congregação salesiana muito tempo vem falando de enculturação do carisma salesiano. Hoje já dá para falar isso, somos vários salesianos, nós que devemos dizer agora, olha, a inculturação do carisma poderia ser desse jeito, ser mais propositivos.
Nas suas palavras aparece uma Igreja que está presente no Instrumentum Laboris, onde diz que as vezes tenta-se impor uma cultura estranha à Amazônia. A gente poderia dizer que também, ao longo de vários séculos, tem se tentado impor uma religião estranha à Amazônia? E junto com isso, como desde a Igreja poderia se apreciar as cosmovisões indígenas para superar essa tentativa de impor?
Um dos desafios nas propostas é ser uma Igreja mais presente, quer dizer, a Igreja nesse caso, são os sacerdotes missionários, missionárias, os bispos, agentes de pastoral, estar mais presente na vida do povo. Eu costumo repetir que mais do que estar presente, gostar dos povos para estar trabalhando, gostar das culturas, dos conhecimentos. Isso que vai fazer com que o missionário, o padre, o bispo, comecem a dizer, eu quero aprender a língua desse povo, participar da festa com eles, ser um iniciado. Quando eles gostam muito de um missionário ou missionária, eles dizem, irmã, padre, nós vamos dar o nome tukano, tuyuka, para você, quer dizer, eles estão fazendo esse caminho de aceitação do missionário, da missionária, como membro da sua própria cultura.
Existe, de fato, os chamados benzimentos, de criar essa interação de fraternização, de acolhida do outro. A Igreja, ela se torna estranha quando ela, através de seus missionários, de seus sacerdotes, querem fazer sem diálogo, sem compreensão, sem escuta às comunidades, ele quer impor, sem dizer isso é bom para mim, mas como é para mim, vai propor, sem ouvir a contribuição dos membros daquela comunidade, daquele povo. Aí não se torna mais estranho, porque eles vão dizer, nós decidimos isso, com o missionário, com a missionária, ela vai estar conosco, nós vamos a estar com ela, aí forma essa união, unidade de ideais missionários. Aí não tem mais aquela separação de olhar, a Igreja é o padre, é a irmã, é o bispo, nós parecemos que não somos Igreja.
Através do discurso, a gente vai percebendo ainda que muitos de nós indígenas, não digo eu, mas grande parcela, não se sentem como parte do Povo de Deus, olham os outros como Igreja nós não, somos pessoas que vamos em algum momento. Essa parte da reflexão, ela é muito importante enquanto que ajuda nesse reconhecimento do outro, que o outro é muito importante para a Igreja. Nem todo sacerdote, nem todo missionário, não está no nível de compreender isso. Por isso também, na formação do missionário, da missionária, deve haver a formação, que para mim seriam os próprios indígenas dando sua contribuição, para contar como é a cultura, como são os comportamentos, como funciona a organização social.
O missionário, muitas vezes, faz isso porque não tem noções do que está fazendo, ele não conhece como é o povo. Se não consegue fazer essa mudança pela compreensão, ele acaba desistindo, fica chateado, pensa que o povo não gosta dele, fica desanimado. O povo deve animar o missionário, o bispo. Por isso que o Papa diz, ajudem os vossos bispos, missionários, sacerdotes, para que juntos se plasme uma Igreja com rosto amazônico, com rosto indígena. Não é um trabalho só dos indígenas, só do missionário, mas deve ser um trabalho feito em conjunto. É muito bom quando o povo, o padre, os missionários, missionárias, conseguem essa comunhão, a comunidade se torna muito feliz, satisfeita, brinca espontaneamente com o missionário, missionária, e ele também com o povo, essa liberdade de estar bem.
Quando não acontece isso, aí que gera insatisfação de ambas as partes. Por isso, que em muitos lugares vai dizer o Instrumentum Laboris, já dizia também o Documento Preparatório, que deve haver uma conversão profunda de ambas as partes, tanto indígenas como missionário, missionária, bispo, aí que vão acontecendo, pouco a pouco, essas mudanças da Igreja, vai se criando ou configurando uma Igreja com rosto amazônico, com seu ritmo próprio, sua maneira de relacionar-se, de estar com eles. Lá no interior, nas comunidades pequenas, é mais fácil de fazer essa experiência, de uma Igreja com rosto indígena. Nos grandes centros urbanos, já é mais difícil, porque existe outro ritmo, mas deve também aparecer a valorização das culturas nas diversas culturas urbanas. Não é só nacionalizar os cantos, as pastorais, mas valorizar a questão do local de atuação.
Na hora de organizar a Igreja da Amazônia é fundamental ter em conta a cosmovisão das próprias comunidades, sobretudo das comunidades indígenas. Nas comunidades indígenas, o Instrumentum Laboris, na hora de falar sobre as cosmovisões indígenas, reconhece o elevado sentido de comunidade, igualdade e solidariedade, e isso deve levar a uma conversão pastoral que ajude a superar o clericalismo da Igreja e dos missionários que vem de fora. Quais são os passos que deveriam ser dados para que isso aconteça?
Para a essa convivência fraterna, simples, o missionário, missionária, a conversão pessoal no sentido de desvestir-se de sua própria maneira de ver o mundo, a Igreja, os povos indígenas, os indígenas de ver o missionário, deve haver essa conversão, no sentido de que eu tenho que olhar o outro como um irmão. O povo indígena, com suas culturas, é irmão do missionário, missionaria, do bispo, não haver esse distanciamento. Por isso, quando se pensa nessa nova maneira de ser Igreja, os interlocutores, os protagonistas dessa nova Igreja, devem ser os próprios indígenas. O missionário vai estar aí com eles, a questão ministerial passa por aí, não dá para concentrar tudo hoje, precisaria distribuir os serviços, os ministérios, para que mais pessoas possam estar ao serviço do bem da comunidade, e isso, em questão das tradições indígenas tem aquele que benze, aquele que cuida de outra parte da vida da comunidade, tem catequistas, tem as mulheres responsáveis para canto, os jovens para ornamentação. Isso já existe dentro de cada cultura, os papeis especializados para quem vai ser mestre em curas, benzimentos, quem vai organizar os cantos, as danças, quem vai cuidar da casa, do preparo da comida.
Esses serviços já são existentes, e a Igreja, o missionário e missionária que chegam, devem conhecer essas realidades importantes que são expressões de uma comunidade. Esses valores já são valores cristãos, que vem de Deus, Ele já colocou no coração dos povos indígenas todo esse desejo de fazer o bem, e eles conseguiram, cada qual do seu filtro cultural, são indígenas, mas cada povo tem o seu modo de agir. Também tem a questão da interculturalidade no Instrumentum Laboris, justamente para dizer que essa interação com outros povos, com outras realidades não humanas, o mundo das águas, da floresta, o mundo subterrâneo, ela é existencial, e isso aparece muito nos rituais, cerimonias indígenas, que mostram para nós que não somos apenas nós no mundo, nós interagimos com os seres do alto, as constelações, que são nossos irmãos, trovões, os subterrâneo do mundo das águas, dos seres que vivem lá.
Nesse patamar onde nós pisamos tem tantos irmãos, de diversos continentes, que interagem conosco. O missionário que vem de fora, ele vem de algum lugar, chegando na área de sua atuação missionária, ele se torna um membro da comunidade e ele deve também acolher esses povos com coração missionário, e os povos indígenas acolhe-lo com coração indígena. Isso seria, ao meu ver, a enculturação do missionário, só que não é fácil. Eu muitas vezes sinto muita dificuldade, e quando sinto isso, eu fico imaginando quanto mais deve ser difícil para quem não é indígena, por uma parte. Por outra vejo que para muitos indígenas é muito mais difícil do que para quem não é indígena, que chega se aproxima, se insere, gosta, se empolga, porque isso não vai delimitar, porque não pode se dizer que quem é indígena missionário, terá mais facilidade. Pelo contrário, eles sofrem mais barreiras, conflitos do que o missionário não indígena. Os caminhos para ser um bom missionário está aberto, tem impedimentos para um e para outro, todos têm possibilidades de serem bons missionários, bom padre.
Na sua conversa, já falou sobre um dos temas que já despertou mais polêmica, inclusive na grande mídia, que é a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas que já tenham uma família constituída e estável com a finalidade de assegurar os sacramentos. Como ajudar a entender, especialmente àqueles que vivem fora da Amazônia, a necessidade de que essa possibilidade seja instaurada nas comunidades indígenas mais afastadas?
É um sonho para a região amazônica, inicialmente. Como disse o Papa Francisco, nós vamos pensar na Amazônia, só que claro, os críticos também têm razão em criticar isso, porque essas experiências ou soluções relacionadas à Amazônia, pode acabar influenciando o mundo inteiro. Eu não discordei nada disso, isso já era dito desde o início. Aquilo que forem experiências boas, positivas, eclesialmente, culturalmente, com os povos amazônicos, pode se tornar também como novos modelos de ações missionárias para a questão ministerial. Como a tradição da Igreja é muito antiga, muito forte, inclusive o sacerdócio para os homens casados, pessoas maduras, foram sempre preocupações. Em alguns lugares conseguiram fazer, e aqui na Amazônia se pensou como uma solução para o pouco número de sacerdotes para atender centenas, milhares de comunidades, se pensou nesse modelo. Não surgiu do nada, surgiu de outras experiências de outros lugares.
Por isso que teve o simpósio teológico em Roma com diversos especialistas, biblistas, da história da Igreja, do direito canónico, os pastores de outras experiências Igreja anglicana, outros, para mostrar para nós que existem possibilidades para pensar isso. Claro que os cardeais europeus, de modo mais específico na Alemanha, criticaram isso com muita dureza. Eu não vejo como uma proposta inatingível, muitos bispos da Amazônia, eles vão discutir e mostrar que é importante para a Igreja na Amazônia, em algumas regiões. Tem bispos que também não são favoráveis, então vai ser uma discussão muito interessante, muito importante, profunda, porque aí é que nós vamos entender qual é o alcance dessa proposta, desse sonho.
Para mim, ao meu ver, teriam casais ou não cassais também, que poderiam assumir isso para atender uma região ou algumas comunidades, como já se faz com alguns ministros da Eucaristia. Ele atende as comunidades próximas dele, umas três, cinco comunidades, mas vive a vida dele. Porque quando se pensa nesse ministério, muitos já pensam em questão financeira, como e que ele vai sustentar a família, como que ele vai viver. Para mim se tornam como se fossem desculpas para não aceitar essa nova proposta. Para mim está claro que só na prática se poderá ver, ele não está disputando nada com outros sacerdotes que vivem o celibato, esse sacerdócio vai continuar existindo, só que quem pensa o contrário, pensa que nós vamos abolir o sacerdócio existente na atualidade. Isso não é compreender nada, continua, esse seria uma proposta.
Pelo que já falei, inclusive já escrevi sobre isso, teria que pensar esse sacerdócio de homens casados numa perspectiva de que os povos indígenas, ou outros povos da Amazônia, são muito importantes na sua dignidade, não somente para dizer, vamos fazer isso porque não tem padres lá, não tem mesmo, mas fazer por reconhecer a grandeza da pessoa humana, aí tem sentido, eu bato nessa tecla ainda. Antes de aprovar isso, temos que, como Igreja, reconhecer os povos indígenas, os povos amazônicos como muito importantes como pessoas humanas. Se nós olharmos indígenas como os inferiores, incapazes, aí não vai ganhar força. A própria história que vai aprovar também, eu vejo.
A mesma coisa é dizer que os indígenas não tem condição de viver o celibato, mas quem que tem condição, ou quem já nasceu para ter capacidade de viver o celibato. O celibato se vive com a graça de Deus, com esforço humano, isso saiu até no simpósio teológico quando alguém disse que para os indígenas é muito difícil viver o celibato. Onde você viu isso, para todo mundo é difícil viver o celibato, mas não está dito que os indígenas não vão viver o celibato, podem, claro. São mudanças profundas, com o tempo, por exemplo nós, indígenas, estamos aumentando o número, o que vai mostrando a capacidade de sermos sacerdotes como outros sacerdotes. Também temos fraquezas, e assim será também com esse ministério de homens casados. Com o tempo que vamos vendo a ausência de certos elementos em sua formação, que temos que oferecer para eles, respondendo ao desafio da nova realidade que pode surgir. Mas não vai depender desse Sínodo para a Amazônia. Eu tenho uma expectativa que isso vai ser uma indicação, com muita probabilidade, é sonho.