Celso Pinto CariasColunistas

Ler o Antigo Testamento com os olhos de Jesus Cristo

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

          Dias atrás o redator da coluna foi a um dentista que gosta muito de conversar sobre religião. Sabendo de minha formação perguntou: “Celso, esteve aqui um pastor, e perguntei a ele por que os cristãos citam somente o Antigo Testamento? Ele não me deu uma resposta”. Resumidamente tentei explicar, sobretudo na perspectiva de que não são “todos os cristãos”. Mas essa é uma questão extremamente relevante em tempos de fundamentalismos que usam o sofrimento do povo para se manter no poder. Uso aqui “Antigo Testamento” (AT) por ser mais popular, pois se recomenda hoje usar primeiro e segundo testamento (Novo Testamento – NT).

          Como diria o meu orientador de mestrado e doutorado, Alfonso Garcia Rúbio, qualquer pessoa com “meio neurônio” desconfia quando algo não está bem fundamentado. O dentista, mesmo não sendo religioso, tem bem mais que “meio neurônio” naturalmente, e mesmo sem formação específica levantou uma questão que muitos tem se perguntado. Vamos salientar alguns pontos, mas existe muito a dizer sobre isso.

          O cristianismo tem a Bíblia como um livro sagrado e inspirado por Deus. Afirma-se, inclusive, que a Bíblia não erra. De fato, qualquer pessoa que se considere cristã deve aceitar tal pressuposto de fé. Contudo, todas as tradições cristãs históricas, catolicismo, ortodoxos, protestantes e anglicanos, afirmam também que a Sagrada Escritura passou por um processo redacional contextualizado social, econômico, cultural, e politicamente determinado. A inspiração divina não retira do texto a mão humana. É uma grande desonestidade não levar isso em consideração.

          As pessoas sabem também que toda tradução, por melhor que seja, não é capaz de expressar, cem por cento, aquilo que foi escrito em um determinado momento histórico. Os especialistas da área literária chegam a brincar usando a seguinte frase: “Toda tradução é uma traição”.  Inclusive os dois idiomas originais dos textos bíblicos, não são mais falados e escritos exatamente do mesmo modo como hoje são falados e escritos: hebraico e grego. E até por isso, traduzir é extremamente necessário. Mas é preciso ter cautela.  Também é uma grande desonestidade não reconhecer tal fato.

          Um bom exemplo do que foi dito acima é quando o livro do Levítico 18, 22 afirma que deitar com um homem é uma “abominação”. Só que o mesmo livro, em 11,9ss, afirma que comer camarão também é uma “abominação”. E agora? Este livro tem várias passagens que se comparadas com o modo de viver da grande maioria dos cristãos de hoje, muitas contradições de comportamento seriam encontradas.

          A leitura fundamentalista da Bíblia, tomar o texto ao “pé da letra”, tem provocado ao longo dos séculos, e pior, ainda hoje, muitos problemas.  Então, o que o cristianismo deveria fazer? Não recomendar mais a leitura da Escritura Sagrada? De forma alguma. Conheci pessoas sem iniciação bíblica que percebiam que precisavam fazer a leitura com determinados critérios. No século passado, sim, quando comecei a estudar teologia, um senhor muito simples me fez uma pergunta que me deixou enrolado: “Por que na Bíblia existem contradições?”. Eu certamente corado, perguntei: “Como assim?”. Aí ele citou o Sermão da Montanha, em um Evangelho é proclamado na montanha, mas em outro é na planície. E por aí vai. Podem-se verificar aparentes contradições em vários relatos.  Aparente porque a contradição geográfica não desqualifica a mensagem.

          Assim sendo, para o cristianismo, o critério fundamental é tentar expressar a mensagem da Bíblia com os olhos de Jesus Cristo. E isto qualquer um pode fazer. E porque não se estimula tal prática hermenêutica (interpretação)? Aquele “ouvi o que foi dito”, mas “agora eu vos digo”, é a chave. Evidentemente que estou fazendo uma simplificação, mas justamente para afirmar que tomar o AT ao pé da letra é um ato ideológico, é um modo de afirmar a vontade do poder dominador e não da vontade de Deus. Como diz o nosso grande biblista Carlos Mesters, é preciso ler por trás das palavras. E os próprios Evangelhos oferecem o itinerário para realizar o Caminho pelo qual seguidores e seguidoras de Jesus devem percorrer para ler a Sagrada Escritura: viver os valores do Reino de Deus.

          Há um grande consenso no que diz respeito à missão de Jesus Cristo. Grandes teólogos afirmam que a mensagem central de Jesus de Nazaré é o Reino de Deus. Por exemplo, Joseph Ratzinger, já como Papa Bento XVI, publica um livro, “Jesus de Nazaré”, no qual dedica um capítulo inteiro para explicar esta centralidade: “O Evangelho do Reino de Deus”.

          Assim, em toda a trajetória de Jesus está contido o critério pela qual se deve compreender Deus e a vida humana e, respectivamente, buscar entender os textos bíblicos. O Sermão da Montanha é certamente um ótimo exemplo da ressignificação que o Mestre de Nazaré faz para entender o caminho pedagógico de Deus para nos revelar como devemos agir na história a partir do seu ensinamento. Outra narrativa significativa é Mateus 25, onde aparecem nitidamente quais os critérios para a salvação: “tive fome, e me deste de comer,…”.

          Ora, quando nos confrontamos com este ensinamento, cai por terra qualquer possibilidade para justificar preconceitos, intolerância, ausência de fraternidade, ódio e violência. Não se pode aderir ao Caminho de Jesus Cristo e não pautar a vida pela ética do amor. A Primeira Carta de João é uma ótima síntese deste processo: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso” (1Jo 4,20). Portanto, citar o NT nos compromete com essa ética. Mas para aqueles que querem uma religião para justificar o poder dominador, é melhor recortar trechos do AT, descontextualizando-os, e não lembrar o olhar de um Deus Misericordioso que nos convida a observar o caminho humano sempre na perspectiva da superação do mal e da luta pela justiça, como os próprios profetas bíblicos, ainda no AT, lembra-nos.

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