Nesses dias de Copa do Mundo na Rússia, não só a triste derrota dos 7 a 1 do Brasil contra a Alemanha nos vêem a memória, mas também o não legado social que o país deveria ter herdado. Entre tantas perdas de direito, houve a violação da moradia digna e os despejos forçados que aconteceu em dos os estados que receberam obras para a Copa.
O IHU publicou hoje (18) de junho deste ano, o artigo com o título: “Só arrancaram a casa do lugar, e fim”: 4 anos depois, desapropriados da Copa questionam remoções desnecessárias. O artigo traz depoimentos de famílias que foram despejadas pela lógica da especulação imobiliária e denunciam como violação.
Segue o artigo!
O terreno de Romildo Ramos era “um sítio completo”, com árvores frutíferas, água potável e uma casa construída com o esforço de muitos anos no Loteamento São Francisco, em Camaragibe, na região metropolitana do Recife. Até que a Copa de 2014 surgiu no horizonte, provocando uma série de desapropriações para abrir caminho para a Arena Pernambuco, um dos 12 estádios do mundial.
“A gente tinha o nosso canto, o nosso lar, era feliz”, diz Paula Santos, 41 anos, nora de seu Ramos. “Desmoronou tudo. Para quê foi feita a Copa? Para tirar as famílias do lugar?”
A reportagem é de Júlia Dias Carneiro, publicada por BBC Brasil, 17-06-2018.
Seu Ramos morreu pouco tempo depois da Copa terminar, no fim de julho de 2014. Sua casa havia sido demolida, e ele estava endividado após construir um cômodo às pressas na parte do terreno que lhe restou, após ter metade de seu lote desapropriado. “Ele estava sufocado. Tinha problema de coração e morreu de infarto. Não aguentou a pressão”, lamenta ela.
Quatro anos depois da Copa, Paula só consegue sentir repúdio ao olhar para o estádio construído perto de sua casa pela Odebrecht, ao custo de R$ 532 milhões, palco para cinco jogos durante o mundial.
“Aquilo tirou nosso sonho, nossa estabilidade. Nossa perspectiva de viver em um lugar seguro. Hoje moramos no Ramal da Copa, com o terreno aberto para a pista, com carros passando, sem segurança, sem vizinhos. É muito descaso”, diz.
Os dramas de moradores que sofreram desapropriações nos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 se repetiram em outras cidades-sede no Brasil, nas quais milhares de remoções foram conduzidas também para abrir espaço para projetos de infraestrutura para o megaevento, como corredores expressos para BRTs (sistema de ônibus rápido) e alargamento de vias.
Somente no Rio de Janeiro, de acordo com cálculos do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas da cidade, mais de 22 mil famílias passaram por remoções ou desapropriações entre 2009 e 2015 – em processos relacionados tanto ao mundial de futebol quanto aos Jogos Rio 2016.
Um deles foi Jorge Santos, de 57 anos, último morador a sair da Vila Recreio 2, comunidade de 183 famílias no Recreio dos Bandeirantes, desapropriada para a construção do BRT Transoeste.
“Passou a Copa, passou a Olimpíada e 80% do nosso espaço continua lá, vazio”, diz Santos.
Para ele, os custos e o processo de sediar a Copa do Mundo fizeram o mundial “perder a graça” para os brasileiros.
“A Copa aconteceu em cima da desgraça de muita gente Brasil afora. Graças a Deus a Alemanha enfiou aquele 7×1, porque se Brasil tivesse vencido, teria sido o argumento de que tudo valeu a pena. O Brasil precisava de uma lição.”
‘Mania de grandeza’
De acordo com relatos ouvidos pela BBC News Brasil, muitas famílias removidas no processo de preparação para os megaeventos continuam sentindo os impactos no longo prazo.
Os prejuízos incluem a precarização da situação de moradia; a contração de dívidas; a ruptura de laços comunitários; a mudança para regiões periféricas e por vezes dominadas por facções criminosas; e processos burocráticos e extensos para receber indenização.
Isso fora a frustração sentida nos casos em que áreas desapropriadas acabaram não sendo usados para os fins que justificaram a remoção. Foi o caso de parte das remoções ocorridas no Recife, onde havia planos de construir uma ambiciosa “cidade da Copa” nos arredores da Arena Pernambuco, que foi erguida no município de São Lourenço da Mata, na região metropolitana da capital.
“Pernambuco tem mania de grandeza, e o projeto inicial era alardeado como uma cidade de ponta. Era para ser a primeira ‘smart city’ da América Latina, com a arena, shoppings, escolas e universidades”, lembra a arquiteta e urbanista Ana Ramalho, professora da Faculdade Damas. “Nada daquilo foi construído, só o estádio”, diz.
Ramalho integrava o núcleo interdisciplinar de pesquisa do Observatório das Metrópoles que acompanhava, nas doze cidades-sede brasileiras, os impactos da Copa do Mundo, coordenando o núcleo de Recife.
Ela estima que 900 famílias tenham sofrido desapropriações na região do estádio, mas o número não é oficial – a arquiteta diz que, apesar de reiterados pedidos feitos ao governo do Estado na época, números oficiais não foram repassados ao grupo de pesquisa.
Procurada pela BBC News Brasil, a Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco (PGE–PE) informou que 121 imóveis foram desapropriados no município de Camaragibe, nos arredores do estádio, para dar lugar às obras do Ramal Cidade da Copa, para o Terminal Integrado de Ônibus de Camaragibe e para a construção do Corredor Viário Leste-Oeste.
Das seis faixas inicialmente projetadas, entretanto, o Ramal da Copa acabou ficando com apenas duas; e o terminal integrado não foi construído.
“A área ficou largada, com um terreno vazio que hoje está cercado, murado”, diz Ramalho. “Quatro anos depois, não se chegou a algum lugar. Não há evidência da utilidade pública que levou à desapropriação de tantas famílias naquela região”, afirma a arquiteta.
Questionada pela BBC News Brasil, a Secretaria das Cidades do Estado de Pernambuco afirma que a área ainda será utilizada para a ampliação do Terminal Integrado de Camaragibe.
“Será realizada nova licitação para a revisão do projeto de ampliação do terminal”, diz o órgão, por meio de sua assessoria de imprensa.
Mortes ‘de desgosto’
Depois que seu sogro morreu, há quase quatro anos, Paula Santos e o marido gastaram o dinheiro “que não tinham” para fazer seu inventário e construir uma casa simples, até hoje inacabada, para substituir o imóvel demolido. É lá que vive hoje com seus dois filhos, na parte do terreno que ficou nas mãos da família.
Eles ainda aguardam a indenização pela área desapropriada, que está presa em juízo. Já sua sogra, a viúva de Seu Ramos, Neuza Lucinda, de 64 anos, mora no cômodo que ele construiu antes de morrer, em uma parte baixa do terreno, que alaga sempre que chove.
A nora diz que as condições são precárias. “Ela esta em depressão, morando em uma lama, no barraco que ele construiu. Falamos para ela vir morar com a gente, mas ela não quer. Não quer sair de casa”, diz.
“Tiraram tudo que a gente tinha, e nada foi feito. Foi um descaso total. A gente era feliz. Hoje, estamos enraizados em dívidas. Só arrancaram a casa do lugar, e fim”, exaspera-se.
Paula Santos conta onze pessoas da comunidade que morreram durante as desapropriações no Loteamento São Francisco.
Em maio de 2014, pouco antes da Copa, foi realizado um protesto pela morte de oito idosos falecidos no processo de luta contra as remoções. Depois disso veio a morte de seu Ramos, logo depois da Copa, e de Jerônimo Sebastião de Oliveira, alguns meses depois.
Em maio de 2014, a BBC News Brasil entrevistou seu Jerônimo no Loteamento São Francisco. Ele tinha 72 anos e estava profundamente desgostoso com sua situação, vivendo de favor na casa de uma sobrinha. Havia recebido uma indenização que dizia ser menos que metade do valor de sua casa, e insuficiente para comprar um novo imóvel.
“Eu tinha construído o meu futuro, que era a minha casa, com muito esforço. E, de repente, eles vêm e fazem uma derrota dessas com a gente. Derrubaram o que era nosso sem dar nosso direito”, disse na época.
“Ele tinha um sítio que foi desapropriado para o Ramal da Copa e acabou indo morar perto de um lixão, em uma favela, em uma situação muito dramática”, lembra o pesquisador Eduardo Amorim, que fez sua dissertação de mestrado sobre “os silêncios e silenciamentos da cobertura midiática na Copa do Mundo em Pernambuco” pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Paula Santos diz que ele ficou “desesperado” depois de ir morar na favela. “Ele não tinha como morar ali. Ficou desvairado, com a cabeça a mil por ora, falando que ia vender novamente para comprar em outro lugar. Caiu em depressão e faleceu.”
‘Eu comprei meu imóvel’
Ana Ramalho lembra que o Loteamento São Francisco era regularizado. As pessoas que viviam ali haviam comprado seus terrenos e não tinham histórico de resistência nem de ocupação.
“As pessoas falavam para elas que deviam protestar, fechar avenidas, queimar pneus na rua. E elas falavam: ‘Eu não faço isso, eu nunca fiz isso. Eu comprei meu imóvel. Como é que agora eu vou queimar pneu na rua?'”
Para a arquiteta, o processo envolveu erros “gritantes” do ponto de vista de planejamento urbano. “E do ponto de vista humano, foi muito triste ver o interesse privado, do empreendedor, se sobrepor à gestão urbana. Foi um processo muito agressivo”, diz.
De acordo com a PGE–PE, das 121 desapropriações realizadas no local, 55 foram realizadas de forma administrativa – ou seja, os proprietários entraram em acordo com o Estado para receber o valor proposto de indenização – e os pagamentos já foram quitados. As outras 66 foram por meio de processos judiciais, envolvendo pendências jurídicas ou disputa de valores, mas o pagamento foi liberado em cerca de 90% dos casos.
Nos demais, as indenizações estão depositadas em juízo e sua liberação depende do cumprimento de requisitos legais, como comprovação de propriedade dos imóveis e a regularização fiscal dos tributos incidentes sobre o bem expropriado.
Remoções ‘desnecessárias’
No Rio de Janeiro, a pressão surtida pelos megaeventos foi dupla, com as obras realizadas para sediar a Copa de 2014 e os Jogos Rio 2016.
De acordo com a arquiteta e urbanista Giselle Tanaka, pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, o maior volume de remoções ocorreu entre 2009 e 2010.
A partir de então, o processo se deu de maneira mais espaçado, enfrentando maior mobilização e resistência de comunidades e denúncias de entidades de defesa de direitos humanos.
Tanaka integrava o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas no Rio, que produziu relatórios periódicos sobre os impactos e violações de direitos relacionados à organização dos megaeventos. Ela considera que o cenário deixado pelas remoções hoje confirma os avisos que o grupo fazia no passado.
“O fato de muitas áreas desapropriadas continuarem vazias até hoje, quatro anos depois, só confirma que muitas remoções foram desnecessárias”, diz. “Indica que as remoções não eram motivadas pela necessidade de obras, e sim por limpeza social. O objetivo era tirar moradores pobres de áreas que se queria valorizar.”
Entre os exemplos citados por Tanaka estão a Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico; a favela Metrô Mangueira, próxima ao Maracanã; e as vilas Recreio 1 e 2, onde as remoções deram lugar a um amplo matagal ao lado da avenida das Américas.
Questionada, a Prefeitura do Rio não respondeu antes da publicação desta reportagem, informando que, por se tratar de ações da gestão passada, seria necessário mais tempo para levantar informações sobre a destinação dos terrenos.
O jardineiro Jorge Santos, de 57 anos, lembra que a pressão sobre o Recreio 2, onde vivia com a família havia 16 anos, começou a ser sentida já em 2007, época dos Jogos Panamericanos no Rio.
Com a aproximação da Copa, a comunidade obteve apoio de entidades de defesa de direitos humanos, como a Anistia Internacional, buscando demonstrar que a remoção não era necessária para o traçado do BRT. Entretanto, não conseguiram impedir a remoção.
“Derrubaram a minha casa com tudo dentro, e isso quando o BRT já estava funcionando”, lembra Santos.
Ele recebeu cerca de R$ 27 mil reais de indenização por sua casa e pelo imóvel de sua filha. O dinheiro foi gasto em pouco tempo, vivendo de aluguel. “Eu tinha sala, cozinha, banheiro, dois quartos e uma varanda, e me deram o valor de um barraquinho de madeira”, diz.
Vizinhos que haviam concordado em negociar com a prefeitura saíram recebendo bem mais, lembra, com valores que chegaram a R$ 150 mil.
“Como eu resolvi brigar, me deram o valor mínimo. Mas a minha luta não era pelo dinheiro. Era para morar onde eu tenho direito, até que me provem que o uso daquele espaço realmente é necessário. Nunca ficou provado que era necessário.”
A maioria das famílias da Vila Recreio 2 optou por negociar indenizações com a prefeitura, mas parte concordou em ser reassentada em condomínios do Minha Casa, Minha Vida em Campo Grande, na zona oeste do Rio. Entretanto, muitos acabaram não conseguindo ficar no local, dominado por grupos de milícia.
Santos hoje vive na Vila Taboinhas, a cerca de um quilômetro da Vila Recreio 2. Com a venda de uma camionete, conseguiu adquirir um terreno e aos poucos está levantando uma nova casa. Sua situação fundiária, porém, ainda é irregular, e ele se frustra sempre que passa pela área de sua antiga comunidade, o mato cobrindo os escombros que restaram das casas.
“Moradia não é só uma casa”, afirma. “Há toda uma estrutura de família, amizade, convivência, trabalho, escola para filhos, comunidade religiosa. Vocês que são modernos e estudados chamam isso de pertencimento, não é? É um direito constituído, e que nos foi tirado.”
A página original que esse artigo foi publicado: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/580019-so-arrancaram-a-casa-do-lugar-e-fim-4-anos-depois-desapropriados-da-copa-questionam-remocoes-desnecessarias