Artigos e EntrevistasCEBs e Teologia da Libertação

Que tipo de fé ter?

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Gilvander Moreira

Considerando o que diversos marxistas e a Teologia da Libertação compreendem sobre a questão religiosa e como lidar com a dimensão religiosa, podemos enunciar alguns pontos imprescindíveis para reflexão e práxis sobre a questão religiosa na luta pela terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais. Primeiro, em todas as religiões e suas igrejas enquanto instituições é hegemônica a tendência conservadora que resulta em líderes religiosos, sejam eles padres, pastores ou similares, cúmplices do poder político e econômico da ordem estabelecida. No caso das sociedades capitalistas, são cúmplices das opressões perpetradas pelo capitalismo e pelos capitalistas. E os funcionários das religiões e igrejas se beneficiam do poder também. Segundo, na origem do cristianismo, no baixo clero e atualmente em uma minoria de padres, pastores e leigos/as adeptos da Teologia da Libertação há, sim, compromisso com as causas de emancipação das classes trabalhadora e camponesa. Terceiro, o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) tem razão ao buscar aproximar os cristãos libertários e os marxistas socialistas, pois há, sim, algum tipo de fé nas pessoas militantes revolucionárias. Não está ainda demonstrado historicamente que com a superação das relações sociais do capital e da exploração humana, quando o ser humano tiver a história nas mãos, não haverá mais necessidade de expressões religiosas. Em Cuba, por exemplo, parte do povo cubano é religioso, frequenta igrejas, mesmo sendo socialistas comunistas. Quarto, se nossa preocupação maior é pedagógica, ou seja, como lutar, caminhar e marchar rumo à emancipação humana, nos parece um erro tático grave não lidar de forma emancipatória com a dimensão religiosa das/os trabalhadoras/es e dos/as camponesas/es. Ignorar ou contestar a dimensão de fé das pessoas com discursos racionais joga mais água no moinho das igrejas e correntes religiosas conservadoras, reacionárias, espiritualizantes e moralizadoras. “Parece muito provável que a revolução social em nosso continente – aliás, como a história tem provado – conte em suas fileiras com companheiros que professam alguma religião, assim como qualquer um pode ter a religião que lhe interessar ou não ter nenhuma” (IASI, 2011, p. 146-147). Sem a participação do povo que frequenta as igrejas (neo)pentecostais e os estádios de futebol não teremos luta revolucionária que nos leve à emancipação humana. Em Havana, no triunfo da revolução cubana, Fidel Castro, ao discursar dia 1º de janeiro de 1959, “dizia da fé que sempre teve no povo de Cuba, que era, em suas palavras, mais que uma fé, uma confiança” (IASI, 2011, p. 152). Fé no sentido bíblico não é crença em dogmas e doutrinas, mas trata-se de coragem e confiança existencial em si mesmo, nas/os companheiras/os e em um mistério maior que nos envolve. Quando, por diversas vezes, nos relatos de milagres nos evangelhos da Bíblia se coloca na boca de Jesus: “Tua fé te salvou”, não se está querendo afirmar nenhuma crença em dogmas e doutrinas, mas está se afirmando uma postura existencial de coragem e confiança na luta pessoal, comunitária ou coletiva de que é possível superar os problemas por maiores que pareçam. ‘Fé na luta!’, digamos como dizem as/os militantes do MST, dos Movimentos Sociais e as/os agentes das pastorais sociais. 

Antônio Julio de Menezes Neto corrobora nossa interpretação de Marx relativo à questão religiosa, ao ponderar: “Marx realiza uma crítica concreta, baseada em estudos acerca de relações sociais e econômicas históricas e, não, uma crítica abstrata da religião” (MENEZES NETO, 2012, p. 28). A Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela sua práxis, realiza uma espécie de ‘religiosização da política’, conforme afirma Cândido Grzybowski: “A religiosização de categorias políticas se exprime no uso político de símbolos cristãos, como a cruz nos acampamentos, e na realização de atos religiosos com fins políticos, como missas, romarias da terra, etc.” (GRZYBOWSKI, 1987, p. 68).

Como explicitação concreta da perspectiva religiosa questionada por Karl Marx, corroborando podemos citar o seguinte episódio: um cozinheiro dos frades carmelitas em Houston, Texas, nos Estados Unidos, nos disse, em agosto de 1997: “Sou latino-americano, mas participei da guerra do Vietnã defendendo os Estados Unidos e Deus”. Enquanto nos narrava sua experiência na guerra do Vietnã, ele retirou do bolso uma nota de dólar, mostrou-nos e disse: “Está escrito aqui “we trust in God” (= nós acreditamos em Deus). Lá no Vietnã era a guerra entre o mundo ateu e o mundo crente, a guerra entre Deus e o demônio. Estávamos lá defendendo não apenas os Estados Unidos, mas Deus. Queríamos evitar que os ateus comunistas e o mal tomassem conta do mundo”. Ao ouvir isso, boquiaberto, entendemos que ao se declarar teoricamente ateu, o ‘socialismo real’ traiu a filosofia de Karl Marx, pois entregou um argumento de ouro aos capitalistas que, ateus na prática, se sentem defensores de Deus na terra, mas na realidade são arautos de um ídolo: o deus capital/mercado. 

As necessidades materiais são o que ‘dá mais liga’ para a coesão interna entre os Sem Terra ou Sem Teto em uma ocupação até a conquista da terra. O cultivo dos valores de uma fé libertadora, segundo a Teologia da Libertação, tem certo grau de fôlego para sustentar a perseverança na luta pela terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais na perspectiva de um projeto socialista. No Brasil e na América Latina, com um povo religioso, é impossível fazer revolução socialista sem a Bíblia interpretada considerando os oprimidos da história e ignorando a dimensão de fé das pessoas, mas fé libertadora no Deus que age nas entranhas da história, que combina a fina flor da filosofia de Marx com a fina flor da Teologia da Libertação. A fé, em si mesma é algo ambíguo, pode emancipar ou explorar. No fundo, não basta ter fé. Depende que tipo de fé se cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé ter ou não ter. Importa incorporar uma fé emancipadora como instrumento que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às condições de opressão, pois de tanto obedecer adquire-se reflexos de submissão. Trata-se de ter a fé de Jesus Nazaré e não apenas ter fé em Jesus.

Referências

GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo. Petrópolis: Vozes/FASE, 1987.

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MENEZES NETO, Antonio Júlio de. A Ética da Teologia da Libertação e o Espírito do Socialismo no MST. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters

2 – Retomada Indígena Xukuru-Kariri – Comunidade indígena Arapoã Kakyá -, em Brumadinho, MG – Vídeo 1

3 – Veja a Comunidade indígena Arapoã Kakyá (Retomada Indígena Xukuru-Kariri), Brumadinho/MG – Vídeo 2

4 – “Quando pomos pé num território somos raiz forte.” Arapoã Kakyá Xukuru-Kariri Brumadinho/MG – Vídeo 3

5 – “A terra é nossa mãe; nós, os filhos dela”. Comunidade indígena Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG–Vídeo 4

6 – Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

7 – Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros – 29/7/2020

8 – COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

9 – “Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?” – Para o Mês da Bíblia/2021 – Frei Gilvander -13/8/2021

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