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Tempo de libertar os oprimidos

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Uma das características fortes do Jubileu na Bíblia era a libertação dos escravizados: “Declarem santo o quinquagésimo ano e proclamem a libertação para todos os moradores do país” (Lv 25,10). Esse princípio presente na Lei foi retomando pelo livro de Isaías e por Jesus: “O Espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu. Ele me enviou para… proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros, para promulgar o ano da graça de Javé (Is 61,1-2; Cf. Lc 4,18-19). O Ano da Graça é um ano marcado pela libertação dos oprimidos, por isso, neste Ano da Esperança, também faz parte da nossa missão o compromisso com os diversos processos de libertação.

No Jubileu, a libertação pensada não era para todos os escravizados, mas apenas aqueles que se tornaram escravos por dívida. Porque o Jubileu era um tempo de perdão das dívidas. Contudo, era amplamente enraizada a ideia de que escravizar um irmão israelita era algo inaceitável. Por essa razão, embora se tolerasse a escravização de estrangeiros, havia uma forte oposição à escravidão de israelitas. Essa resistência é presente no relato do profeta Jeremias, que, no contexto do ano sabático, descreve como o rei Sedecias ordenou a libertação de todos os hebreus escravizados, uma medida tomada anos antes do segundo exílio para a Babilônia (Cf. Jr 34,8-22). Contudo, muitos se arrependeram e voltaram a escravizar, o que levou a ira de Javé e a ameaça de outro Exílio. 

A ideia da libertação jubilar é interessante porque transfere para Deus uma tradição do povo que era a figura do goel, palavra que significa “redentor”/“resgatador”. Tal pessoa era um parente que tinha a missão de proteger a família, principalmente os parentes mais próximos. Também era missão do goel vigar a morte dos parentes. Assim, se algum familiar se tornasse escravo por causa de dívidas, era missão do goel pagar pela compra do parente e libertá-lo. Com o Ano Jubilar e a ordem de libertar os escravizados, Deus se torna um parente próximo do povo, seu redentor (seu goel), pois acaba resgatando aqueles que não tinham como pagar as dívidas e se libertar. 

É verdade que no Brasil não há escravidão oficial dente 1888, quando houve a promulgação da Lei Áurea libertando os escravizados. Não por bondade da Princesa Isabel, como alguns defendem, mas por pressão social e fruto de inúmeras revoltas e crises que vinham se desenvolvendo no Império Brasileiro. Contudo, existe muitas formas de emprego análogas à escravidão. Há situações mais escrachadas, como trabalhadores de fazendas enganados e forçados a viver e trabalhar em condições desumanas, com baixos salários e sem chance de largarem o emprego; tráfico humano para exploração sexual etc. Mas também temos situações mais comuns, nem sempre vistas como novas formas de escravidão. Empregos em fábricas, lojas ou mercantis sem carteira assinada, garantias trabalhistas, em péssimas condições de trabalho, horas de serviço em pé, com tempo de banheiro e água milimetricamente contados, pressão psicológica, assédio moral, desrespeito a folgas ou faltas por doenças. Tudo isso é imoral e pecaminoso. Este Ano Santo da Esperança é também um tempo propício para denunciar tais abusos. É tempo de libertar os oprimidos, os novos escravizados. Como lembrou o papa Francisco no seu primeiro encontro com os movimentos populares: “O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos laborais não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que põe os benefícios acima do homem”.

Também é importante destacar o aspecto jubilar de “proclamar a libertação aos presos” (Lc 4,18; Cf. Is 61,1). O que não significa defender a impunidade dos diversos crimes cometidos em sociedade com uma anistia geral. Inclusive, há grupos conservadores apelando para essa dimensão jubilar na tentativa de justificar a anistia dos grupos golpistas do 8 de janeiro que tentaram pôr fim a democracia. A ideia de libertação dos presos pode e deve hoje ser assumida ao menos em dois sentidos fundamentais. Primeiro, uma humanização dos sistemas prisionais. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, mais 800 mil encarcerados, muitos deles nem sequer foram condenados. A maioria pobre e negra. O sistema carcerário brasileiro não reintegra nem diminui o crime, antes o aumenta, pois as condições desumanas que são impostas às pessoas não tendem a redimi-las, mas piorá-las. Segundo, é preciso mudar mentalidades e estruturas que levem a uma organização da sociedade que não descarte uma parte sua para sustentar os privilégios de outra parcela, bem menor e poderosa. “Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto na sua raiz” (EG 59). Isso nos leva a encarar a gritante realidade de que “a desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG 202).

Para mudar essa história e trilharmos novos caminhos, contamos com a grande força dos movimentos sociais, vistos por muitos como vagabundos, baderneiros e marginais. Mas chamados pelo Papa Francisco de “bênção para a humanidade”, “semeadores de mudança”, “poetas sociais”. Para proclamarmos a libertação dos oprimidos nesse Ano Jubilar da Esperança, é fundamental nos unirmos a todas as forças sociais que se empenham nesse caminho. Por isso, no segundo encontro com esses movimentos, Francisco se alegrou com a ideia de que “são muitos na Igreja aqueles que se sentem mais próximos dos movimentos populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão ‘Justiça e Paz’, uma colaboração real, permanente e comprometida com os movimentos populares”. Vamos dar as mãos nessa luta por libertação, o tempo é agora, este é o Ano da Graça do Senhor.

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