Na Igreja (*) – e também na sociedade – toda vez que pessoas, grupos e Movimentos Sociais Populares assumem, clara e publicamente, um posicionamento – prático e/ou teórico – contra a “ordem estabelecida” (ou, melhor, a “desordem estabelecida”), a acusação é sempre a mesma: é ideológico! Ora, por que ser contra a “ordem estabelecida” é ideológico e ser a favor não é ideológico?
Na condição do ser humano – no mundo e com o mundo – não há nenhum posicionamento que não seja ideológico. O ser humano é um ser histórico, situado (no espaço) e datado (no tempo): um ser de busca permanente, um “vir-a-ser”, um ser em construção.
Por isso, toda práxis humana (unidade de prática teórica e teoria prática) é ideológica, ou seja, expressa um posicionamento ideológico. A práxis humana como prática é a “ação” consciente (a ênfase é colocada na “ação” ou militância que – por ser consciente – integra também o conhecimento). A práxis humana como teoria é o “conhecimento” atuante ou militante (a ênfase é colocada no “conhecimento” que – por ser atuante ou militante – integra também a ação).
A ação e o conhecimento (comum, científico, filosófico e/ou teológico) do ser humano acontecem sempre dentro de um contexto histórico concreto, mesmo que sua influência – positiva ou negativa – possa ir além do contexto que os produziu. Isso é válido também quando o objeto da ação e do conhecimento são valores que – à luz da fé – consideramos meta-históricos (absolutos, eternos). A nossa maneira de praticar (viver) e conhecer esses valores é histórica (situada e datada) e, portanto, ideológica.
A ciência (conhecimento científico) – da qual hoje se fala tanto, devido ao grande desenvolvimento que teve nestes últimos tempos – não é neutra. A chamada “neutralidade científica” não existe. A “não-neutralidade” diz respeito não somente ao uso que se faz da ciência (não-neutralidade externa), mas também à maneira como se faz ciência (não-neutralidade interna). A práxis humana do conhecer cientificamente não deve ser confundida com os produtos finais dessa práxis: a televisão, o computador e outros, que são meros objetos.
O que dissemos sobre a não-neutralidade do conhecimento científico vale também – consideradas as caraterísticas de cada tipo de conhecimento – para o conhecimento comum, o conhecimento filosófico e o conhecimento teológico.
Não podemos também confundir “conhecimento comum” com “conhecimento popular”. “Conhecimento comum” é o conhecimento espontâneo, imediato: a maioria dos nossos conhecimentos. “Conhecimento popular” é a ótica do conhecimento: é conhecer desde os pobres, a partir dos pobres. Esse último pode ser comum, científico, filosófico e teológico.
Portanto – diante do exposto – a questão fundamental que se coloca não é saber se um determinado posicionamento – prático e/ou teórico – é ou não é ideológico, mas saber qual é a ideologia que esse posicionamento expressa. É uma ideologia que oprime e leva à morte ou é uma ideologia que liberta e promove a vida do ser humano e do planeta Terra Nossa Casa Comum?
Entre outros possíveis, denuncio um fato que, de alguns anos para cá, está acontecendo na Igreja Cristã Católica e que – por ser a minha Igreja – me deixa profundamente indignado e me leva a lutar com todas as forças contra essa maneira de agir.
Vejam! A II Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín (1968) – que aplica os ensinamentos do Concílio Vaticano II à realidade da América Latina e do Caribe – em seus documentos usa com frequência e naturalidade as palavras “Pastoral Popular”, “Comunidade Cristã de Base”, ou – simplesmente – “Comunidade de Base” (sem a palavra “Cristã” ou “Eclesial” que – por tratar da “Igreja” – está subentendida).
Ora, no processo de “restauração eclesial” e, sobretudo, “eclesiástica” desses últimos anos (apesar do testemunho evangélico e inovador do nosso irmão, o Papa Francisco), a Igreja “Institucional” da América Latina e do Caribe – em suas diversas instâncias – não usa mais as palavras “Popular” e “de Base” por serem – dizem – palavras “ideológicas” ou, com “conotação ideológica” (leiam: do lado dos Pobres!).
Que absurdo! Não é uma traição do Evangelho de Jesus de Nazaré? Meditemos! (Continua na Parte 2)
(*) Neste artigo – em duas partes – retomo, com emendas e reformulações, as reflexões teológico-pastorais do artigo “É ideológico!” de março de 2020, por entender que a questão da “ideologia” é fundamental para a visão da Igreja na perspectiva libertadora (Eclesiologia da Libertação) e é um dos seus elementos constitutivos.
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