A Palavra de Deus é eterna, porque sempre nos remete à realidade, à vida concreta, que ilumina e questiona. Poderíamos dizer que a vida cotidiana é uma peneira pela qual passar o que Deus nos disse tantas vezes, mas a cada momento Ele nos deixa algo novo, aquela novidade com a qual sempre nos surpreende.
O tríduo pascal é um tempo que marca decisivamente nossa maneira de entender e nos relacionar com Deus, algo que entra em nós, ou deveria ser, até na medula. Existem muitos rituais que são vividos apenas nestes dias, momentos em que, se são celebrados como mais do que um mero ritual, descobrimos a ação de Deus em relação à humanidade, marcada pela misericórdia e por sua disposição de estar cuidando da vida.
Um momento que sempre me pareceu muito significativo na liturgia da Quinta-feira Santa, inclusive entre todos os ritos que a tradição católica celebra ao longo do ano, é o gesto de lavar os pés, que este ano de 2020 não será feito, ou talvez sim? E aquí, a gente volta no tempo há mais de duas décadas e se lembra de algumas das coisas que aprendeu nas aulas de liturgia com Luis Maldonado, um homem cheio de grande sabedoria, reconhecido por poucos, e que sempre insistia em dar um significado diferente da liturgia, porque para ele era muito mais que um ritualismo, muitas vezes vazio e sem sentido, que insiste demais nas formas e nada na substância.
O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, surpreendeu a Igreja e o mundo com sua maneira de celebrar a chamada Missa da Ceia do Senhor. Ele queria transcender as paredes do templo e escapou da rígida liturgia do Vaticano para ir a lugares onde quem se acha gente de bem não vai, mas sim o Papa das periferias, lá onde estão os descartados do mundo. Ele o fez, em meio a fortes críticas dos defensores da sã doutrina, que, mesmo em tempos de coronavírus, eles não param de colocar o rito acima da vida, mostrando que se a liturgia não mover os corações, ela estará morta.
Francisco é alguém que sempre surpreende, ele faz isso através de gestos, tantas vezes revolucionários. A situação que a humanidade vive me leva a pensar no sofrimento que ele deve estar vivendo, alguém que, ao longo de sua vida, nunca quis se proteger atrás de muros altos. Um homem que sempre, também agora, tem as pessoas como uma preocupação fundamental, buscando “como acompanhar o povo de Deus e estar mais perto dele”, segundo ele disse a Austen Ivereigh, em entrevista publicada na quarta-feira, 8 de abril.
Nesta Quinta-feira Santa tão diferente que a gente está vivendo, imagino-o lavando os pés, desta vez não com as próprias mãos, mas nas mãos daqueles que cuidam dos que vivem nas periferias atualmente. Não podemos esquecer que as periferias são lugares onde a maioria das pessoas que lá moram, o faz porque é forçada a fazê-lo. Hoje, essas periferias são onde estão aqueles que foram isolados do mundo, confiados aos cuidados daqueles a quem o Papa Francisco batizou como santos da porta do lado. Entre eles tem aqueles que se debatem entre a vida e a morte, os que sentem a solidão como um tormento insuportável. Mas isso se suporta melhor quando a mão amiga daqueles que querem ser um sinal de compaixão, serviço e cuidado está presente.
A liturgia deve ser uma expressão simbólica da vida que nasce de Deus, exteriorizando em um rito aquilo que move nossa vida de fé e nos compromete, o que nos torna testemunhas da misericórdia, que é o que melhor define o Deus de Jesus Cristo. Afinal, se Jesus lavou os pés de seus discípulos, foi para dar exemplo, para que eles fizessem o mesmo. A liturgia não se reduz ao que acontece no templo, a um conjunto de normas para realizar práticas religiosas. Diariamente, encontramos muitos sinais que nos permitem descobrir e dar testemunho de Deus, mesmo quando é feito por aqueles que não se afirmam como crentes. Lavar os pés é um deles, e nesta Quinta-feira Santa, mesmo que não seja feito nos templos, muitas pessoas continuarão a lavar os pés dos outros.
Foto de capa: Ateliê 15