“Entretanto tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Salvador” (Is 45,15). Assim define o profeta. Toda tradição teológica, protestante e católica, está de acordo de que sabemos pouco sobre Deus. Dele há muito mais a calar do que a dizer. No entanto, fico abismado com os “advogados de Deus”. Com os que querem se porta-vozes da vontade de um Deus do qual somos Sua imagem e semelhança, mas não iguais. Com pessoas que do alto de sua arrogância querem manipular a ação de Deus sobre o processo de Sua criação. Portanto, quando falamos que estamos do lado de Deus precisamos nos perguntar: de qual “Deus” estamos falando? Do Deus de Abrão, de Isaque e de Jacó, sim, mas, sobretudo do Deus de Jesus Cristo?
Um filósofo pouco conhecido, mas fundamental no processo de desconstrução de uma determinada imagem de Deus, Ludwig Feuerbach, disse no século dezenove que Deus pode ser “o sonho acordado da mente humana”. Muito crente tem raiva deste pensador, pois ele buscou demonstrar que Deus não existe, é apenas uma projeção da mente humana. Mas antes de ter raiva, é preciso perguntar se, de fato, muitas vezes, não apresentamos um Deus a nossa imagem e semelhança, o que é a verdadeira idolatria. Ora, como estamos em uma narrativa cristã, Deus há de ser apresentado conforme a revelação Daquele que é admitido como a segunda pessoa da Trindade: Jesus Cristo, isto é, um Deus compassivo, misericordioso e amoroso. Que fez história entre homens e mulheres. O Deus das Bem-aventuranças, segundo os evangelhos, o Deus que no juízo final nos perguntará: “Quando foi que me viu com fome, sede, doente, e cuidou de mim?” (Mt 25, 31-46).
A família entrou com vigor no discurso político dos últimos anos. Sim, a família é uma estrutura fundamental para constituir a pessoa humana. Mas aqui também cabe a pergunta: de que família se está falando?Uma família ideal, com papai, mamãe e filhos, ou uma família que sofre muito para se garantir como espaço de humanização? O discurso moral entrou de cheio no discurso político, como se a política não fosse a arte de administrar a cidade em vista do bem comum, mas o lugar no qual se defende um modelo ideal de família que, muitas vezes, nem existe na vida de quem faz discursos moralistas. Quanta hipocrisia. Defensores da “família tradicional” que “pulam a cerca” com frequência, que inclusive tem apartamentos somente para “comer carne” (horrível esta expressão). Defensores da “família tradicional” que desprezam seus pais velhos e que justamente o filho “gay” cuidará com carinho. “Famílias tradicionais” que atiram pedras em pessoas que adotam filhos e filhas desprezadas por estas mesmas famílias.
Nos últimos anos também se voltou a falar com vigor do sentimento patriótico. No Brasil manifestações exaltam a pátria com a camisa da seleção brasileira. Nada contra, muito pelo contrário. São símbolos do povo brasileiro, não é exclusividade de ninguém. Porém, mais uma vez cabe a pergunta: de que pátria se está falando? O orgulho de ser brasileiro não está isolado da realidade planetária. Qualquer nação hoje, talvez com exceção da Coreia do Norte, e Cuba por conta do embargo econômico, não tem mais condições de sobreviver sem uma boa política de relações internacionais. Mesmo os dois países citados não estão completamente isolados. Continua-se insuflando na cabeça das pessoas uma ideia de soberania que não existe mais. Exemplo clássico: identifica-se a China como inimigo mortal, mas no jogo político se faz necessário, sem que a maioria dos “inimigos do comunismo vermelho” saiba, que este país é um parceiro comercial fundamental. Não estamos aqui exaltando a China, mas reconhecendo que é a segunda potência econômica do mundo. Simples assim.
Ao longo de 2022 o discurso político voltará com essa lenga-lenga. Uma amiga, professora de português, faz uma definição rebuscada, mas muito apropriada, desta situação: estão fazendo um “sequestro semântico” de muitos conceitos. Aqui está um clássico exemplo. Certamente a gestão política precisa estar atenta à realidade religiosa do povo (Deus), mas não é responsável direta pela ideia de Deus e de como vivenciá-la no contexto social, político e cultural. Certamente a gestão política precisa constituir políticas públicas de defesa da família, mas olhando para a diversidade da realidade e não promovendo um ideal de família que vai a uma única direção e não percebe, por exemplo, que a violência doméstica é muito mais destrutiva para as famílias do que conceitos ambíguos que refletem mais hipocrisia do que outra coisa. E finalmente, a gestão política está sim a serviço da pátria, mas a pátria é também uma pluralidade de relações que devem, por exemplo, ter muita atenção na questão econômica. Se há fome, a política precisa buscar superar este desequilíbrio social. Se há pandemias e tragédias naturais, a gestão política não pode fazer exceção na ajuda por questões partidárias, pois a gestão é para todos e todas e não apenas para quem votou a favor. Isto é uma democracia. Então, em 2022 vamos falar de Deus, família e pátria?