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A fé da mulher imunda
Por Rute Noemi Souza

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Texto para roda de conversa

Texto de referência: Marcos 5 21 a 34

Imagina você numa sociedade cheia de preconceitos e práticas violentas contra a mulher e ainda ser considerada imunda durante o seu período menstrual?

Imagina agora você ficar com uma hemorragia durante doze anos?
Pois é assim a história que vamos trabalhar. Uma mulher sem nome, que sofria de uma hemorragia e que não tinha mais nada nem ninguém, a não ser a sua intrepidez, a sua ânsia de cura e a sua  fé.

O que nos chama atenção, de pronto, é que a mulher não tinha nome, quero dizer, claro que tinha nome, mas no contexto social da época, as mulheres não valiam muita coisa. E mais, o seu nome foi omitido na história, escrita e para ser lida por homens, que optaram por silenciar as mulheres ao longo da história.          Isso acontece em grande parte dos livros da Bíblia, que propositadamente omite as mulheres, seus nomes e seus maravilhosos feitos. Quer ver?

O que falam as mulheres da Bíblia?

Uma sacerdotisa episcopal, Rev. Lindsay Hardin Freeman, fez uma grande pesquisa* para apurar na Bíblia, quantas mulheres falam e o que elas falam. O seu livro ainda não foi traduzido para o português. Numa tradução livre a partir do original, o título seria “as mulheres da Bíblia: todas as suas palavras e porque fazem a diferença”.

Ela e sua equipe tiveram o  trabalho de contar quantas palavras foram proferidas por mulheres na Bíblia,  porque  ela queria saber o que realmente foi dito por elas. Repara o que elas apuraram:

– 93 mulheres falam na Bíblia. Dessas, 49 tem nome, o que quer dizer que  44  não tem seus nomes registrados.

–  Essas mulheres falam um total de 14.046 palavras, o que equivale a 1.1% do total de palavras   encontradas na Bíblia.

A autora cita as mulheres e suas falas. Algumas: Maria, mãe de Jesus  proferiu 191 palavras; Maria Madalena disse 61 palavras e Sara, esposa de Abraão, 141 palavras.

Ela também compara o número de falas das mulheres com as dos homens, como por exemplo, no livro de Gênesis, há falas de 11 mulheres e de 50 homens.

Viu como tentam dar pouca importância à nossa fala ou omiti-la?*https://www.geledes.org.br/eis-o-numero-de-palavras-atribuidas-as-mulheres-na-biblia/

A nossa personagem principal, então, além do nome omitido, também não tem lugar de moradia, porque o texto não indica a sua cidade, mas possivelmente, era de Cafarnaum.

E não duvidemos, ela era conhecida por toda a sua comunidade porque a sua doença tão longa, a tornava imunda, debilitada, isolada, humilhada, cheia de dúvidas, as cólicas deveriam lhe atormentar, além do empobrecimento  que a doença lhe causou.

Era uma mulher realmente sem esperança, vítima de violência religiosa. Sim, vítima de violência religiosa que a colocava na posição de imunda, porque sangrava.

Por que ela era considerada imunda?

Em levítico 15.19, o ordenamento religioso era no sentido de que “a mulher quando tiver o fluxo de sangue, se este for o fluxo costumado do seu corpo, estará sete dias na sua menstruação, e qualquer que a tocar será imundo até à tarde” e o rigor era tamanho que tudo, absolutamente tudo ficava imundo: a cadeira, a cama, as vestes, os lençóis…

Depois no versículo 25, a coisa fica mais feia ainda: pois se a mulher  tivesse o fluxo de sangue durante muitos dias, mas não na época do período menstrual, ou se tivesse um fluxo que durasse além do seu período mensal, ela ficaria impura durante todo aquele tempo. A nossa personagem, então,  ficou assim por 12 anos. Suas roupas, sua cama, seus pertences e qualquer pessoa que tocasse nela e nas coisas dela ficaria igualmente imunda.

A teóloga alemã Uta Ranke ~ Heinemann, publicou o  livro  “Eunucos pelo Reino de Deus – Mulheres, Sexualidade e a Igreja Católica” (Ed. Rosa dos Tempos, 1996) que apresenta as regras e virtudes da Igreja sobre a sexualidade feminina desde os primórdios da igreja até hoje. Claro que ela foi perseguida, perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg e foi excomungada pela Igreja Católica.

No capítulo II,  ela trabalha sobre o antigo tabu contra o sangue menstrual e suas consequências cristãs. Ela conta que Sorano de Éfeso (século II d.C.) proibia o ato sexual com as mulheres menstruadas e dizia mais, que “o sangue menstrual  fresco mantém o útero  úmido e a umidade não só debilita a vitalidade do sêmen, com a anula por completo”.

Outra pérola da ignorância e demonização do sangue da mulher foi cantada pelo Arcebispo Cesário de Arles por volta dos anos 200: “quando um homem mantém  relações com a esposa nesse período (o menstrual) os filhos  nascidos dessa união são leprosos e hdrocéfalos’. E diz mais:  “Quem mantiver relações com a esposa durante a menstruação, terá filhos que ou serão leprosos, ou epiléticos ou possuídos pelo demônio”.

Repara ainda na fala do arcebispo e acadêmico Isidoro de Sevilha,   em sua enciclopédia Etimologias, que foi referência na Europa por centenas de anos: “depois de tocar-se em Sangue menstrual, os frutos não brotam, as flores murcham, a relva seca, o ferro enferruja, o bronze enegrece, e os cães que o cheiram contraem raiva”.

Então imagina a nossa personagem,  no tempo de Jesus, com todo o ranço e peso das leis judaicas sobre as mulheres. Se em sua casa, as cadeiras, os copos, a cama, o balde, a vassoura, o pente e o que mais a gente imaginar estavam imundos, ela, então, nem ousaria  andar no meio do povo, muito menos ir ao templo. A nossa amiga era Midas ao contrário. Tudo o que ele tocava virava ouro, e tudo o que ela tocava, ficava imundo.

Seu sangue é ouro!

Até hoje o preconceito e a ignorância do patriarcado culpabilizam as mulheres, assim como culpabilizou a nossa irmã da história.  Sangue é coisa nojenta, suja; o menstrual, então… Em meu trabalho com mulheres já ouvi de várias, que fazer sexo menstruada é pecado, e contam experiências constrangedoras para elas, quando ficaram com a saia “suja de sangue”.

Percebe como a gente perpetua algo preconceituoso e sem qualquer fundamento?

“Seu sangue é Ouro – Despertando para a Sabedoria da Menstruação”, livro publicado pela escritora Laura Owen (Ed. Rosa dos Tempos), traz uma reflexão necessária e nos provoca para que mudemos o nosso olhar com relação ao nosso fluxo menstrual. O sangue é ouro, é vida, ele propicia um tempo de ouvirmos o nosso útero, de entender os sinais que ele nos transmite, de mergulhar profundo em nossa espiritualidade, porque o nosso sangue menstrual purifica o nosso corpo.

Mergulhando na história:

O texto de Marcos diz que,  tendo Jesus atravessado de barco para o outro lado, onde uma grande multidão o esperava, veio ao seu encontro um homem importante, um chefe da sinagoga chamado Jairo, que prostrou-se aos pés de Jesus e lhe pediu insistentemente que  o acompanhasse porque a sua filha estava à morte, e impusesse as mãos sobre ela, para que ficasse curada.

Jesus o atendeu, não porque Jairo fosse um chefe, alguém importante na Sinagoga,  mas porque se compadeceu da  criança que estava mal, e caminhou com Jairo até a sua casa.

Pra variar, por onde Jesus passava, a multidão o seguia, o comprimia, clamava por cura… Imagina se alguma mulher poderia ficar próxima a ele? Não era dado às mulheres estar no meio da multidão, principalmente na linha de frente e muito menos dirigir-lhe a palavra ou tocar-lhe.

E uma mulher imunda, solitária, doente? Muito menos ela, pois se encostasse em alguém, coisa natural em uma multidão, tornaria imundo aquele ou aquela em que ela encostou.

O fato é que a sua dor e a sua fé eram maiores que a lei e o decoro moral e religioso da época. Ela sabia que tinha poucas chances e que falar com Jesus seria impossível, mas como um mantra, ela repetia para si: se eu o tocar ficarei curada. Que confiança em suas mãos. Ela tinha a fé na palma das mãos!

Repara que Jairo pediu a Jesus que  fosse à sua casa e impusesse  as mãos sobre sua filha. Ele pediu que Jesus curasse para sua filha.

A nossa amiga, não! Ela foi atrás da cura: “Se lhe tocar ficarei curada”. Mulher potente e com uma fé que exigia atitudes e ela não se furtou a dar praticidade à sua fé.

Foi só um toque dela nas vestes de Jesus, mas tão impregnado de certeza e tão potente que Jesus captou na hora que algo tinha acontecido. E não foi uma sensação de estar imundo (lembra que ela estava imunda e no que tocasse ficaria imundo também).

Foi um movimento sinérgico: Ao tocar a veste ela ficou curada e no mesmo instante Jesus captou que dele saíra poder. Que coisa linda!

“Quem me tocou?”, perguntou ele. E os seus discípulos que deviam estar cansados de tanta gente, de tanta caminhada, de tanta confusão, não sacaram nada: “a multidão te aperta e o senhor ainda fica achando que alguém te tocou? Fala sério, mestre, se organiza, se orienta”….

Nós também pensaríamos assim, não?! As coisas precisam ser óbvias para que acreditemos. Mas não para a mulher, que já não era mais imunda em função de um toque, e muito menos para Jesus.

Jesus passou a procurar na multidão quem tinha tocado nele. Imagina a hora em que os seus olhos se encontraram com os da mulher, agora curada?  Emoção pura. Se Tom Jobim já tivesse composto a música, a nossa amiga poderia ter cantado assim pra Jesus:

“Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar, ah, que bom que isso é meu, Deus, que frio que me dá o encontro desse olhar”…

Sem que Jesus pedisse ou talvez tenha pedido com os olhos, a mulher, sob forte emoção se prostrou e contou sua caminhada de dor, que havia cessado ao tocar nele.

A nossa amiga e jesus praticaram atos transgressores (transgredir é ir além!):

– ela transgrediu a lei judaica se colocando (imunda) no meio da multidão e transgrediu ao tocar num homem em público, coisa impensável pra qualquer mulher “certinha”.

– Jesus transgrediu ao perceber algo  divino que acontecera ali, transgrediu ao chama-la com os olhos para o meio da multidão e transgrediu ao deixá-la falar. Aleluia!

Jesus, pedagogicamente, transferiu para a mulher a cura acontecida: A Tua Fé Te Salvou!!!  Ao proclamar isso, Jesus quis  dizer a ela que a força dela, a coragem dela, a intrepidez dela foram responsáveis pela cura. Jesus também quis ensinar à todas as pessoas, e também à Jairo, o que é uma fé prática.

O que faremos com isso?

Hoje é o “tempo dos milagres”. Barateamos a nossa fé por milagres nem tão milagrosos assim, e proclamamos coisas equivocadas, duvidando da força e da nossa fé.

A mulher agora curada nos ensina a crer, ousar, transgredir e a fazer qualquer coisa em busca da cura, mesmo que seja um toque.

A postura de Jesus, acolhedora e empoderadora, legitima as ações da mulher. Vem pra roda, fala, toca, reconhece, declara a cura, compartilha e vai em frente, construindo estratégias coletivas de sobrevivência com outras mulheres igualmente corajosas que ousam praticar a sua fé com apenas um toque. Mulheres que tem a fé na palma da mão.

O poeta Maiakovski diz, num poema que “de agora em diante, faremos nós mesmos os nossos milagres”. É o que Jesus disse à mulher: sua força, sua fé e seu toque foram milagrosos e eles te salvaram.

É preciso, então, soltar todas as amarras, quebrar todos os paradigmas para que o melhor de nós apareça através da nossa fé.

A cura, a alegria, o equilíbrio e a coragem estão na palma da nossa mão. E Jesus nos abraça em nossas decisões vivificadoras.

Dinâmica para facilitar a reflexão:

Uma mulher com vestes longas e cabeça coberta com véu está na roda, representando a mulher que vem ao encontro de Jesus, em busca de cura. Sua expressão deve ser cabisbaixa  e não deve retrucar qualquer xingamento a ela dirigido.

O ideal é que ela seja negra, gorda, ou velha para que apareça naturalmente o preconceito de todas nós.

Quem conduzir a dinâmica, deve propor às pessoas na roda que por não gostarem  de seu atrevimento,  passam a chama-la das coisas mais machistas e desrespeitosas, como as  que  ouvimos constantemente:

“Vai pra casa; vagabunda; gorda;

velha; macaca; imoral; demente; louca

vai lavar um tanque de roupa; vai cuidar da sua casa;

vai se olhar no espelho, porca, fedorenta…

O desafio é que as mulheres presentes digam, sem constrangimento, os vários xingamentos que ouvem. Os acima só são pra facilitar, que podem ser ditos também por quem conduz a dinâmica.

– Jesus Chega na roda (pode ser uma mulher, de preferência negra), olha a mulher, escuta o que as mulheres dizem, a acolhe com o olhar, e passa a dizer:

“você emana poder: a tua fé é poderosa; seus olhos tem luz…

Se abraçam e saem da roda caminhando suavemente. Termina a encenação.

Aí as perguntas (algumas sugestões, mas você pode formular outras):

O que dizemos das mulheres?

– O que os homens dizem das mulheres?

– Nós, mulheres dizemos de nós o mesmo que os homens?

– A nossa fé tem nos motivado a mudar o tratamento que damos umas às outras?

– Acreditamos em nossa capacidade de mudar a nossa realidade?

– conseguimos contar com as nossas irmãs para vivenciarmos coletivamente, experiências transformadoras?

– Que ações práticas estou dando à minha fé?

– Acredito mesmo que a minha fé pode me curar e curar as minhas companheiras?

Boas reflexões! Caminhemos juntas. Deus Presente.

RNS/março de 2020

Rute Noemi Souza é pastora, advogada, assistente social, artista e ama cantar e contar histórias.

 

 

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