O ambiente de violência generalizada em que nos encontramos faz com que ninguém esteja completamente imune ou protegido. De uma forma ou de outra, a violência atinge todas as pessoas, ainda que seja pelo sentimento comum de insegurança e medo. Nem mesmo a classe média/alta está livre. Basta ver a busca por condomínios fechados e o crescimento do mercado de segurança privada.
Mas não nos iludamos: Se a violência de alguma forma atinge todas as pessoas, não atinge todas as pessoas na mesma proporção e intensidade. Não “estamos todos no mesmo barco”. Na “melhor” das hipóteses, estamos todos no mesmo oceano de violência generalizada. Mas, enquanto alguns estão em iates, outros estão em barcos, outros estão agarrados a um tronco e milhares já morreram afogados num mar de sangue. Enquanto alguns são protegidos, outros são exterminados – até pelo próprio Estado. É falso e cínico o discurso ideológico de universalização da violência que trata todas as pessoas como igualmente vítimas da violência
Mesmo entre as maiores vítimas da violência (pobres, negros, indígenas, mulheres, população LGBT etc.) há diferenças que não se podem negar nem minimizar. É verdade que há muitas formas de violência (econômica, racial, de gênero, sexual etc.) e nenhuma delas pode ser banalizada e minimizada. E é verdade que essas diversas formas de violência estão muito mais implicadas umas nas outras do que parece, formando um tecido social extremamente violento. Mas é verdade também que quando qualquer dessas formas de violência está associada à violência econômica, que nega as condições materiais de reprodução da vida, ela adquire dimensões e proporções muito mais graves: Entre uma mulher rica e uma mulher pobre, entre um gay rico e um gay pobre, entre um negro rico (coisa muito mais rara) e um negro pobre, por exemplo, há diferenças consideráveis que não se podem minimizar. Nem se pode banalizar nenhum tipo de violência, nem se pode colocá-las todas no mesmo nível.
É curioso que o discurso de universalização da violência tende a tratar todas as pessoas como vítimas da violência, mas não como sujeitos da violência. Aqui a violência não aparece como um fato universal que diz respeito a todas as pessoas: ela tem classe e raça. Violenta é a população pobre e negra das periferias que está encarcerada ou é candidata nata ao encarceramento ou mesmo ao extermínio: são “bandidos”, são uma ameaça à sociedade, devem ser exterminados – “bandido bom é bandido morto”! A elite que se proclama vítima da violência dos bandidos (medo, assalto, agressão etc.) não se reconhece como sujeito da violência (econômica, psíquica, estatal/policial etc.) contra os pobres. Mesmo uma mulher que é vítima do machismo ou um gay que é vítima de homofobia nem sempre se reconhece como sujeito de violência contra a empregada doméstica ou contra os pobres em geral. A tentação é sempre responsabilizar o outro pela violência. E o outro normalmente é o que se encontra numa situação de dominação: a mulher, o gay, o negro e, sobretudo e em última instância, o pobre.
O discurso de universalização da violência (todos são igualmente vítimas!) é sempre um discurso classista-racista (os pobre e negros são os responsáveis pela violência!). O resultado dessa lógica perversa se traduz numa cultura de preconceito, desprezo, aversão e violência contra as vítimas e em políticas públicas de defesa dos interesses das elites e criminalização da pobreza e dos pobres.
Atenção: Não estamos todos no mesmo barco! Não somos igualmente vítimas da violência! Por isso não se pode tratar todos da mesma forma: onde há dois pesos, tem que haver duas medidas. No centro de nossas preocupações tem que está sempre a defesa dos direitos das maiores vítimas da violência. Elas são, n’Ele, juízes e senhores de nossas vidas, Igrejas e sociedades (Mt 25, 31-46).