O clamor dos povos indígenas na Amazônia é um grito que vem de longe, inclusive do momento em que os primeiros colonizadores chegaram na região. Um desses povos é o povo mura, que desde o início do século XVIII teve que “se esconder para existir”, como eles mesmos reconhecem, uma realidade que tem aumentado em tempos de pandemia de coronavírus.
A terra é um elemento fundamental na vida dos povos indígenas, que significa tudo para eles. De fato, como reconhece a professora Jéssica Maciel Cabral, que mora na aldeia Tucumã, “nós sobrevivemos da terra, nós sobrevivemos da água, e a partir do momento que nossa terra é explorada e nossas águas são poluídas, nós também deixamos de existir”. Os próprios indígenas denunciam claramente que sua subsistência está totalmente ameaçada pela falta de terra para trabalhar, os fazendeiros a cada ano vão entrando cada vez mais. Os indígenas estão tendo que ir embora por falta de terra para trabalhar.
Nos últimos anos, o povo mura, que principalmente mora no município de Autazes – AM, sofre a pressão dos fazendeiros e das empresas mineiras. Os indígenas denunciam a ameaça de uma mina financiada por uma empresa canadense, que quer explorar potássio e silvinita em suas terras, que entrou na terra mura sem avisar os impactos para a comunidade, segundo denunciam lideranças indígenas. Tem acontecido fatos que desrespeitam claramente a lei, como conta Jair dos Santos Esagui, ancião do povo mura, da aldeia Soares.
Ele relata como pessoas relacionadas com a empresa mineira, chegaram para dizer que estavam fazendo uma pesquisa, mas sem especificar o que era. “Eles disseram que queriam comprar meu terreiro, mas eu disse, não vendo meu terreno, não, e não tenho previsão de vender. Mas você tem que vender, porque a empresa está precisando. Só que eu não vendo, não. Se você não vender, você vai perder”, conta o ancião do povo mura, relatando uma realidade cada vez mais presente na Amazônia, que os governos têm colocado ao serviço dos interesses dos grandes projetos.
O que tem acontecido com o povo mura em relação com a mineração, segundo Edina Margarida Pitarelli, do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, é consequência da “má informação e falta de informação”. No inicio, relata a missionária, “os mura tinham acatado o empreendimento como algo bom, necessário até, para o desenvolvimento da região”, uma postura que mudou após que o CIMI ajudou a refletir sobre o que a mineração iria provocar e que teve como consequência que eles fossem consultados pela mineradora, o que provocou que a justiça solicitasse um acordo de paralisação até que os muras decidissem o que eles queriam.
Diante disso, os mura, segundo Ilair Pereira dos Santos, lutam para que “esse empreendimento não possa acontecer em nosso território, porque a gente tem certeza que vai causar um impacto tanto ambiental como social”. Eles lutam pela demarcação das suas terras, o que “vai contribuir muito para que esse Brasil seja um país de harmonia e que a gente possa viver com mais segurança dentro dele”, afirma Francisco Oliveira da Silva, tuxaua da aldeia Taquara. Mas eles têm consciência, segundo reconhece Greicilvani dos Santos da Silva, que “nós mesmos, sós, não vamos conseguir, nós vamos lutar até o fim, mas não vamos conseguir, porque as forças maiores são mais fortes”.
A outra grande ameaça para o povo mura são os búfalos. O município de Autazes tem mais de 80 mil búfalos sem controle, poluindo lagos, destruindo plantações e depredando o meio ambiente, algo que atinge decisivamente a vida de um povo que tem a caça e a pesca como atividades essenciais.
Francisco Oliveira da Silva, denuncia que “não se encontra mais aquela fartura de peixe e de caça”. Junto com isso, o tuxaua denuncia a poluição dos rios e lagos, consequência do criatório de búfalos, “um animal que não se adapta ao nosso clima, um animal que precisa de muito pasto para comer, para andar, foi aí que começou a contribuir para o grande desmatamento”.
Os búfalos também ameaçam os cultivos, como relata Greicilvani dos Santos da Silva. Segundo ela, “o ano passado tivemos que ficar lá vigiando o nosso plantio, porque se não ficar, o búfalo ia lá e ia derrubar tudo. Cada ano que passa, cada derrubada que fazem, vai ficando mais dificultoso. Se continuar do jeito que está, nossos filhos, nossos netos não vão mais existir”. Desde o CIMI, Edina Margarida Pitarelli também denuncia que é constante as invasões dos búfalos, além dos madereiros, onde ainda existe alguma madeira, pois tudo já está bastante devastado. Segundo ela, “muitas aldeias já não conseguem plantar mais nada, porque o terreno é pequeno, não garante a sustentabilidade, e ainda os búfalos destroem as várias plantações, os lagos, é uma situação gritante e muito desafiadora”. A consequência é uma crescente perda da biodiversidade, denunciada por lideranças indígenas, que também falam da pesca predatória nos lagos.
Como acontece com outros povos indígenas, a Igreja católica está acompanhando a vida do povo mura desde há vários anos, especialmente a través do CIMI, a REPAM e ultimamente do projeto Desenvolvimento e Paz, da Caritas Canadá. Segundo Edina Margarida Pitarelli, a situação atual do povo mura está determinada por territórios muito pequenos, “onde as famílias não conseguem sobreviver, não conseguem fazer um plantio, não conseguem desenvolver qualquer projeto sustentável”.
A missionária do CIMI conta que “diante da pandemia, eles estão fazendo várias barreiras sanitárias para que as pessoas não entrem nas aldeias, não os contaminem, mas a situação deles é bastante precária”. Autazes, o município onde mora grande parte do povo mura, tem 633 casos confirmados até 4 de junho, com 22 falecidos. Segundo os dados fornecidos pelas organizações indígenas o povo mura está entre os atingidos pela pandemia. Algo que acabou se tornando um problema é que quem conseguiu o auxílio que o governo deu, acaba saindo em busca do alimento nas cidades, o que aumenta o risco de contagio. Diante da realidade que o povo mura vive, o CIMI está procurando ajudar em algumas situações mais urgentes para socorre-los, sobretudo ajudas para eles manterem essas barreiras sanitárias de isolamento.
Os missionários do CIMI, no momento, não estão entrando nas aldeias, “por respeito a eles, é decisão deles, a gente está acompanhando o processo das barreiras sanitárias, fazendo documentos das denúncias que eles querem, e de outras denuncias já feitas que o Ministério Público Federal pede informações”, segundo Edina Margarida Pitarelli. Ela afirma que “estamos incentivando a tentar fazer algum plantio para poder superar o momento pós pandemia, que a gente acredita que seja um momento de crise, um momento delicado também”. Nesse sentido, “logo no início da pandemia, enquanto equipe, conseguimos produzir 800 mudas de frutíferas e café, e isso a gente está levando até as aldeias como um tipo de incentivo para que eles plantem e aumentem a produção, e parece que está dando certo”, segundo a missionária.
As palavras de Francisco Oliveira da Silva, resumem o sentir do povo, “o nosso dever como índio mura é vigiar, mas nem por nós ser um guardião da floresta, nós não somos respeitados, nossos direitos são violados”. O povo mura é consciente que aquilo que é recolhido nos artigos 231 e 232 da Constituição não é respeitado, também não pelo governo federal, estadual e municipal, empenhados em manobras que ferem a Constituição e estimulam ações violentas dos fazendeiros, grileiros e empresários contra os indígenas, além de negligência nas áreas de saúde e educação. É por isso que os indígenas falam que “não tem nenhuma proposta que possa beneficiar os povos indígenas”.
Diante dessa realidade, os povos indígenas deixam claro que “nós entendemos que a terra é sagrada, vamos derramar até a última gota de sangue para defende-la”. Eles são conscientes da importância de conhecer a lei, de saber dos seus direitos, de aprender a se defender. No final das contas, o povo mura só quer preservar sua terra, ainda mais sabendo que “os não indígenas não preservam, a tendência dos não indígenas é acabar com tudo”