Para os que somos cristãos e cristãs, a Quaresma é um tempo de conversão e mudança de vida; um tempo forte de graças de Deus, que nos impele a viver – sempre mais intensa e radicalmente – a “vida nova” em Cristo na sociedade e no mundo de hoje.
A Campanha da Fraternidade lembra-nos que todos e todas somos irmãos e irmãs em Cristo, filhos e filhas do mesmo Pai-Mãe. Por isso, todos e todas – na diversidade dos dons (carismas) e serviços (ministérios) – temos a mesma dignidade e o mesmo valor. Esse é o ideal de Jesus de Nazaré, esse é o nosso ideal.
Ora, sem igualdade e sem justiça, a Fraternidade (ou Irmandade) é uma mentira e uma hipocrisia. Segundo a organização não-governamental britânica Oxfam, no mundo, 1% da população detém a mesma riqueza dos 99% restantes; 62 pessoas acumulam o equivalente à riqueza dos 50% mais pobres da população. No Brasil, 5% da população detém a mesma riqueza dos demais 95%; 6 pessoas concentram a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres (cerca metade da população do país).
Nessa realidade tão cruel e tão iniqua – que é o pecado social ou estrutural – como podemos dizer que somos de fato irmãos e irmãs? A única coisa que podemos dizer é que acreditamos no ideal de Jesus de Nazaré, que é um projeto de vida de Fraternidade (o Reino de Deus) e que estamos comprometidos com ele, lutando para que esse ideal se realize – cada vez mais – na história do ser humano e do mundo
A Campanha da Fraternidade deste ano (CF19) tem como tema Fraternidade e Políticas Públicas e como lema, “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27).
O objetivo da Campanha é: “Estimular a participação em Políticas Públicas, à luz da Palavra de Deus e da Doutrina Social da Igreja para fortalecer a cidadania e o bem comum, sinais de Fraternidade” (CF19. Texto-Base, p. 18).
As Políticas Públicas – de Governo e de Estado – são “um conjunto de ações (ou programas de ações) a serem implementadas pelos gestores públicos, para promover o bem comum, na perspectiva dos mais pobres da sociedade” e “colocar em prática direitos que são previstos na Constituição Federal e em outras leis” (Ib. p. 19): leis municipais, estaduais e federais.
Na Democracia Representativa e, sobretudo, na Democracia Participativa, os atores sociais das Políticas Públicas “podem ser indivíduos, grupos, movimentos sociais, partidos políticos, instituições religiosas, organizações públicas e privadas (a sociedade civil organizada). É na esfera pública (bem comum) que acontece a interação entre eles, mas também é onde ocorre os conflitos, as disputas, a cooperação e a negociação para confrontar ou apoiar a implementação de determinada Política Pública” (Ib. p. 37).
Falar, pois, na implementação de Políticas Públicas sem falar do “chão” no qual essas Políticas Públicas são implementadas, é ter uma consciência ingênua (não crítica) da realidade. O “chão” das Políticas Públicas no Brasil (como em muitos outros países) é o modelo de sociedade capitalista neoliberal dominante, no qual vivemos. Nesse modelo de sociedade – estruturalmente desigual, injusto, desumano e anticristão (embora se fale muito o nome de Deus em vão para “naturalizar” e “legitimar” a perversidade desse modelo), as Políticas Públicas – sempre necessárias – são medidas “paliativas” e, ao mesmo tempo, “contraditórias”. Elas não resolvem os problemas sociais na raiz e em caráter permanente, mudando as estruturas (é por isso, que são “paliativas”). Mesmo assim, as Políticas Públicas, de um lado (o que é positivo) servem para “amenizar” e “aliviar” situações “pontuais” e “conjunturais” de injustiça e de violação dos Direitos Humanos; de outro lado (o que é negativo) são “concessões” (muitas vezes demagógicas, oportunistas e interesseiras) do Governo, que visam “agradar” o Povo (trabalhadores e trabalhadoras, e pobres em geral) para mantê-lo “alienado” da vida pública, para que não se revolte contra o Governo e para que continue votando nos políticos e governantes que defendem a manutenção e o fortalecimento do modelo de sociedade capitalista neoliberal dominante (é por isso, que são “contraditórias”).
Diante dessa realidade, os Movimentos Sociais Populares, Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, Partidos Políticos Populares, Conselhos de Direitos, Comitês ou Fóruns de defesa e promoção dos Direitos Humanos e outras Organizações Populares – juntamente com todos os e as que queremos um modelo de sociedade diferente e estruturalmente novo: a Sociedade do Bem Viver ou, à luz da fé, o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo – precisamos nos unir e nos organizar para lutar por Políticas Públicas que não somente aliviem situações “pontuais” e “conjunturais” de injustiça e violação dos Direitos Humanos, mas que também e sobretudo (a médio e longo prazo) abram caminhos para a mudança de estruturas e para a implantação do novo modelo de sociedade que tanto almejamos. Que assim seja!
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 06 de março de 2019