Por Gilvander Moreira[1]
Na Carta aos Gálatas, livro do jubileu de ouro do mês da Bíblia – setembro – em 2021, o apóstolo Paulo busca manter a unidade entre as primeiras comunidades cristãs em uma imensa diversidade, mas assevera que a Opção pelos Pobres é inegociável. “Não esqueçam os pobres!” (Gl 2,10), Paulo chega a colocar na boca dos chefes da igreja de Jerusalém. Esses “pobres” eram concretamente os “irmãos” da Judeia que viviam em uma pobreza extrema, reinava a fome. Na comunidade cristã de Jerusalém, quando a distribuição se tornou maior do que a entrada ou a produção de recursos, chegou uma hora em que os bens acabaram e a fome se generalizou. Sem produção suficiente, não se pode consumir e/ou distribuir. Em contexto de aumento da pobreza e de muita gente passando fome, sob a liderança do apóstolo Paulo e Barnabé, o espírito de comunidade nascido da fé em/de Jesus Cristo levou comunidades cristãs de outras regiões a fazerem doações para minorar a fome dos irmãos e irmãs. Isto era também uma expressão de unidade. O fato de pensar diferente não era motivo para ‘lavar as mãos’ como Pilatos diante do sofrimento de outras pessoas e comunidades.
Segundo a lei judaica, interpretada de forma rígida, um judeu não podia se sentar à mesa com um gentio. Então seriam duas Igrejas, a dos judeus e a dos gentios, sem a partilha ritual da Ceia do Senhor, mas com a partilha efetiva dos “irmãos” gentios para com os “irmãos” da Judeia. É Paulo defendendo fraternidade real e concreta com todos os empobrecidos, independentemente das opções religiosas ou ideológicas. Mais adiante, ao longo da sua argumentação buscando sempre afirmar a liberdade diante de tudo o que escraviza, o apóstolo Paulo afirma de forma lapidar: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (Gl 3,28).
Na Carta aos Gálatas transparece de forma muito forte Paulo rechaçando a realidade de escravidão, tanto das relações sociais escravocratas do império romano quanto da escravidão que tinha se tornado a Lei judaica sendo imposta inclusive sobre os não-judeus. Paulo repete várias vezes as palavras ‘escravo’, “escrava’ e ‘escravidão’ ao longo da Carta aos Gálatas para enfatizar que: a) está abolida a diferença entre escravo e livre (Gl 3,28); b) quem está agarrado à Lei judaica continua escravizado; c) “éramos escravos” (Gl 4,1.3); d) “você já não é escravo, mas filho” (Gl 4,7); e) “vocês foram escravos de deuses” (Gl 4,8); f) “vocês querem recair na escravidão?” (Gl 4,9); g) na história houve “filhos da escrava Agar gerados para a escravidão” (Gl 4,22.23.24.25); h) “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres. Portanto, fiquem firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão!” (Gl 5,1).
Paulo revela que o egoísmo e o individualismo estimulados pela ideologia dominante de uma sociedade escravocrata é estupidez e um corredor de morte para todos/as, pois leva “todos a se morderem e a se devorarem uns aos outros e até a destruição mútua” (Gl 5,15). Como intelectual de alto quilate Paulo não fazia uma análise ingênua, nem idealista, nem romântica da realidade conflituosa na qual os cristãos e as cristãs das comunidades da Galácia viviam. Certamente, Paulo percebia também que não apenas com solidariedade e cuidado dos pobres se superaria as relações sociais escravocratas estimuladas aos quatro ventos pela ideologia dominante do império romano e também por expressões religiosas e culturais que pavimentavam o caminho para a reprodução cotidiana das desigualdades sociais. Além de cuidar dos pobres sendo solidário/a, é preciso enfrentar os lobos vorazes e cruéis, muitas vezes, travestidos de bons samaritanos, seja no mundo da política, da economia ou da religião.
Em Gálatas, Paulo afirma à exaustão que todas as pessoas são livres e devem se comportar como pessoas libertadas e jamais recair nas garras de nenhum tipo de escravização. Paulo terminou sendo martirizado, porque quanto mais radicalizava sua missão mais revelava a incompatibilidade entre o projeto defendido por ele a partir da fé em Jesus Cristo e o projeto imperial ecoado pelos arautos da ideologia imperial. Ontem, o império romano e as religiões domesticadas e domesticantes que serviam aos interesses da classe dos de cima. Atualmente, o sistema capitalista, que, de mil formas, empobrece, violenta e mata o povo, a mãe terra, as fontes de água e todos os ecossistemas. O apóstolo Paulo, nos dias de hoje, no nosso meio, certamente diria que enquanto perdurar a estrutura fundiária pautada no latifúndio e no agronegócio com política econômica capitalista neocolonial, com Estado subserviente aos interesses das grandes mineradoras e do grande empresariado do campo e da cidade, não teremos a superação da pobreza, da fome, da miséria e de tantas escravizações que se reproduzem cotidianamente e explodem em cenas dramáticas, por meio do feminicídio, do racismo estrutural, da homofobia, de expressões religiosas burguesas que desencarnam a fé cristã, espiritualizam a mordência histórica de Deus que, por amor infinito, assumiu a condição humana em Jesus Cristo. Portanto, acolher a mensagem do apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas, atualmente, implica em se comprometer com os/as injustiçados/as em todas suas lutas libertárias justas e necessárias.
Paulo não quer somente fraternidade “espiritual” ou de amizade, mas exige principalmente fraternidade econômica[2], política e cultural. Não agrada ao Espírito de Deus pessoas que se encontram para a eucaristia ou cultos aos domingos, mas que durante a semana são umas opressoras das outras. Paulo quer superar as oposições de classes. Se ricos e pobres, judeus e não-judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões e… comem em lugares diferentes, moram em casas de qualidades muito diferentes, o cristianismo terá um conteúdo diferente para cada grupo e não haverá realmente uma comunhão. É hipócrita e cínica uma comunidade e sociedade na qual uns poucos se banqueteiam, enquanto a maioria passa fome; na qual uns têm casas próprias luxuosas e a maioria geme debaixo da pesadíssima cruz de aluguéis ou da humilhação que é sobreviver morando de favor na casa de parentes ou ainda sob o frio e os riscos da rua; na qual uns recebem remunerações milionárias, enquanto milhões sobrevivem só com salário mínimo ou com migalhas do trabalho informal. É escravocrata uma sociedade na qual uns vivem luxuosamente, enquanto milhares sobrevivem do/no lixo; na qual uns detêm o muito poder econômico, político, midiático e religioso e as massas são subjugadas. Igrejas que se apegam e casam com o poder opressor trocaram o Evangelho de Jesus Cristo por uma aliança com a mentira, coisa diabólica.
Em Gálatas, Paulo defende uma comunhão eclesial que seja antes de tudo comunhão integral, fruto de condições materiais que garantam os corpos estarem lado a lado, com respeito à dignidade de todos/as, e comendo da mesma comida, partilhando alegrias e angústias. Paulo nos faz recordar o padre Alfredinho[3], da Fraternidade do Servo Sofredor, que gostava de dizer: “Os ricos se salvarão quando aprenderem a passar fome”.
Ontem, Gálatas; hoje, nós. “E agora, José?” Paulo, em Gálatas, aponta que quem deseja seguir a Jesus deve armar-se de disponibilidade para a cruz, ou seja, tornar próprias as disposições daquele que o precede, identificando seu projeto com o do Mestre. Jesus não temeu ser considerado um fora-da-lei pela sociedade estabelecida. E seus seguidores: o que mais temem? Paulo nos convida a ver na cruz injusta de cada um/a de nossos irmãos e irmãs, próximo ou distante, um crime hediondo contra a humanidade e contra Deus.
Enfim, terminamos este texto no qual buscamos pescar raios de luz e força para a caminhada cristã pessoal e comunitária, apontando se não o maior, um dos maiores perigos da atualidade: “Penso que o maior perigo para a Pedagogia de hoje está na arrogância dos que sabem, na soberba dos proprietários de certezas, na boa consciência dos moralistas de toda espécie, na tranquilidade dos que já sabem o que dizer aí ou o que se deve fazer e na segurança dos especialistas em respostas e soluções. Penso, também, que agora o urgente é recolocar as perguntas, reencontrar as dúvidas e mobilizar as inquietudes.”[4] Inspirados/as por Paulo, em Gálatas, sigamos com Opção pelos Pobres, batalhando pela superação das relações sociais escravocratas que perduram na sociedade atual.
Bibliografia
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
27/07/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – CARTA AOS GÁLATAS – BLOCO 1
2 – CARTA AOS GÁLATAS – BLOCO 2
3 – CARTA AOS GÁLATAS – BLOCO 3
4 – CARTA AOS GÁLATAS – BLOCO 4
5 – CARTA AOS GÁLATAS – BLOCO 5
6 – Senhora de Guadalupe, rogai por nós! Reflexão. Gálatas 4,4-7 e Lucas 1,39-47. Manoel Godoy –12/12/20
7 – Live de lançamento do livro: “Carta aos Gálatas: até que Cristo se forme em nós” (Gl 4,19).
8 – Canto da Carta aos Gálatas (Paródia) – Mês da Bíblia/2021 (setembro) – CEBI-MG – 11/7/2021
9 – O texto-base do Mês da Bíblia 2021
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Dom Moacyr Grechi, ao investigar denúncias de torturas de trabalhadores rurais bóias-frias, disse: “Quero uma reunião somente com os trabalhadores, pois junto com os patrões eles não estarão livres para dizer a verdade.”
[3] Fredy Kunz, o inesquecível padre Alfredinho. Sua trajetória espiritual entre os excluídos está narrada em seus livros, muitos traduzidos no exterior: A sombra do Nabucodonosor, A Ovelha de Urias, A Burrinha de Balaão, A Espada de Gedeão e O Cobrador.
[4] LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 8.