ColunistasPadre Francisco Aquino Júnior

Ideias que mascaram e justificam violência

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

A violência é uma das realidades mais presentes e difusas no dia-a-dia do nosso povo: “a violência nossa de cada dia”. Chega mesmo a ser uma marca ou característica fundamental de nossa sociedade. Por isso se fala tanto de violência. Mas as ideias que se constroem e se espalham sobre violência nem sempre refletem a complexidade e dramaticidade dessa realidade e de suas vítimas. E muitas vezes são construídas e usadas para esconder determinadas formas de violência (dos ricos, do Estado, dos brancos, dos homens, dos heterossexuais, dos religiosos etc.) e justificar outras formas de violência (contra indígenas, sem terra, sem teto, povo da rua, favelas, negros, encarcerados, mulheres, LGBTs, terreiros etc.). Basta pensar na forma como se costuma tratar a violência policial nas favelas, mesmo em chacinas como a que aconteceu recentemente na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro: “bandido bom é bandido morto”!

Precisamos refletir sobre as ideias mais comuns e difusas sobre violência: aquelas que se repetem (repetimos!) cotidianamente e de maneira bem espontânea. Elas servem muitas vezes para esconder/abafar a violência dos grandes/fortes e justificar violência contra os pobres e marginalizados da sociedade:

– Violência não é coisa de pobre/negro/favelado, como apresenta e induz a mídia, num claro intento de criminalização dos pobres e justificação da violência estatal/policial. Isso aparece claro e escandalosamente na diferença de tratamento dos programas policiais aos crimes praticados por jovens pobres e negros das favelas, por jovens brancos de classe média/alta e, sobretudo, por policiais. Mas está também no imaginário popular que tende a identificar pobre/negro com bandido e branco/rico e policial com cidadão. É bom lembrar que agressão e homicídio não são praticados apenas por pessoas pobres e negras e que elas, antes de serem sujeitos, são vítimas de violências as mais diversas;

– Não se pode reduzir violência a agressão física e homicídio, mesmo que essa seja sua forma mais visível e extrema e sua compreensão mais comum. Há muitas outras formas de violência que antecedem, acompanham e sucedem agressão física e homicídio: socioeconômica, estatal/policial, psíquica, religiosa, étnico-racial, de gênero etc. São formas de violência que, por sua constância e generalidade, são naturalizadas e já não dão ibope. Mas é importante lembrar que agressão física e homicídio são fruto e culminância de um processo longo e complexo de violências. Quando alguém chega a praticar ou sofrer esse tipo de violência, já praticou ou sofreu muitas outras formas de violência;

– Não se deve compreender violência como algo natural-animal, como se o homem fosse vítima de um instinto animalesco agressivo incontrolável. É algo que se vive e se aprende em sociedade. É um fato sociocultural. Ninguém nasce violento. Aprende-se a ser violento. E esse aprendizado se dá normalmente na experiência da violência e como reação à violência sofrida: violência gera violência. Certamente, ela tem raízes e dinamismos biológicos, mas não se pode confundir agressividade animal com violência humana: a agressividade é comum ao homem e ao animal (instinto); a violência é própria do ser humano – surge como “racionalização da agressividade” (razão);

– Violência não se identifica sem mais com uso de força. Não qualquer uso de força é ou pode ser considerado violência, mas somente aquele que agride a dignidade do ser humano, privando-o dos meios materiais, políticos, sociais, culturais, religiosos, sexuais etc. de reprodução da vida. Sem falar que a força que pode favorecer ou impedir a reprodução da vida não é apenas de caráter físico, mas também de caráter econômico, político, cultural, psicológico, religioso etc. O que caracteriza a violência não é, portanto, o uso da força (qualquer que seja e praticada por quem quer que seja), mas seu caráter destrutivo da vida humana ou de injustiça forçada.

As ideias servem para ajudar compreender a realidade, mas podem ser usadas para mascarar a realidade e justificar os interesses de determinados grupos. Cuidado com as ideias de violência que você repete e propaga. Elas podem servir para justificar a violência contra as maiores vítimas da violência que são os pobres e marginalizados.

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