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Jesús López Fernández de Bobadilla: “ser caluniado por ajudar os migrantes me enche de orgulho e satisfação”

Por Luis Miguel Modino

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Nossas escolhas de vida sempre têm conseqüências, especialmente quando optamos pelos mais fracos. Jesús López Fernández de Bobadilla até pouco tempo atrás era apenas um padre a mais, o primeiro que morava em Pacaraima, uma pequena cidade bem na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Nascido na Espanha, chegou ao Brasil em 1985 e depois de algum tempo decidiu ser padre, sendo ordenado em 1999 como sacerdote diocesano de Roraima.

Pouco mais de um ano atrás decidiu ajudar os migrantes venezuelanos. Isso teve como conseqüência a perseguição de muitos dos seus concidadãos, bem como muitos dos seus paroquianos. Tudo o que ele faz é ajudar aqueles que chegam “porque estão com fome, porque morrem de fome”, enfatiza o padre. “É uma fome que grita, uma fome desesperada, uma fome que não agüenta, que não aceita atrasos”. Por isso, começou o que ele chama de “café fraterno”, que no início era repartido para 80 indígenas Warao, mas que cresceu até chegar a 1700 venezuelanos por dia.

Em Pacaraima há um clima de tensão, que teve seu surto mais forte em 18 de agosto, com o ataque aos imigrantes venezuelanos. O padre Jesus compreende a xenofobia, mas não a justifica, uma xenofobia que está sendo alimentada pelos discursos de alguns políticos. Tudo isso não impede que os imigrantes continuem a chegar, pois a migração “vai continuar forte até mudar as coisas em Caracas, o que vai ser difícil”, como reconhece o sacerdote, que diz que os venezuelanos vêem no Brasil a terra prometida.

A Paróquia de Pacaraima realiza diferentes atividades para ajudar os imigrantes venezuelanos, o que muitos católicos da cidade não aceitam. Nesse sentido, o Padre Jesus diz abertamente que “eu sou caluniado, sou alvo de muita ira, há reportagens que dizem que sou o culpado por tanto imigrante venezuelano aqui”. Tudo isso, o próprio sacerdote reconhece que “me enche de orgulho e satisfação”. Ele ainda afirma que “eu não me arrependo em absoluto, de jeito nenhum do caminho que tenho dado ao meu trabalho paroquial aqui em Pacaraima, que é proteger os mais fracos, quem mais precisa, que agora são os imigrantes venezuelanos”, palavras que ganham mais força se considerarmos que vêm da boca de alguém que tem 77 anos.

Nesse ponto, ele lembra as palavras do Papa Francisco: “não diga que é um cristão quem não acolhe o imigrante”. Ele insiste que ele faz isso por causa de um sentimento humano, de fraternidade, seguindo o espírito do bom samaritano. Nesse sentido, a partir das palavras de Santa Teresa de Calcutá, ele reconhece que “mesmo que Deus não exista, continuarei fazendo a mesma coisa”. É a atitude de alguém que reconhece que “me sinto ameaçado, não com medo”.

Como o senhor chegou em Pacaraima?

Eu pertenço à diocese de Roraima. Eu sou uma vocação adulta, fui ordenado sacerdote em 99, isto é, tenho 19 anos como padre. A primeira missão eu estava em Caracaraí, sul de Roraima, fiquei nove anos lá e depois eu, falando com Dom Roque, o anterior bispo, disse-lhe que seria bom vir para Pacaraima, porque eu sou espanhol, pela proximidade da língua. Eu pensei que seria bom estar aqui. Nunca houve um padre aqui, um pastor. Então eu pedi para vir aqui. Dom Roque achou muito bom e aqui vamos fazer 9 anos.

Pacaraima tornou-se um lugar bem conhecido, foi colocado no mapa, por causa do problema da imigração dos venezuelanos. Como o senhor está lidando com essa questão da imigração venezuelana?

Infelizmente, Pacaraima é tristemente famosa. É o portão de entrada, este êxodo venezuelano pela força tem que passar por aqui, os primeiros a receber o povo venezuelano somos nós. Como recebemos, como sentimos essa avalanche, esse dilúvio? Bem, aqui temos que distinguir várias fases. Isso começou a ser sentido no início do ano passado, quando começou a faltar comida na Venezuela. Essa falta de comida fez com que muitos comerciantes médios viessem a Pacaraima para comprar comida.

Esse começo dessa imigração foi bom para Pacaraima, todo mundo lucrou, o comércio vendeu o que ele nunca tinha vendido. O cidadão pacaraimense acolheu esses imigrantes. Mas aos poucos houve uma mudança radical, eles não eram apenas comerciantes que vinham comprar, eram as pessoas famintas. Os venezuelanos estão aqui porque estão com fome, porque morrem de fome, e isso não é um simbolismo ou uma metáfora. É uma fome que grita, uma fome desesperada, uma fome que não agüenta, que não aceita atrasos.

Então começou a vir mais o povo, e nesse momento a situação de Pacaraima mudou, pois junto com quem vinha com fome, com necessidade angustiosa, as máfias também vinham. Aqui em Pacaraima instalou-se uma máfia de exploração sexual de crianças, drogas, liderado por colombianos, assaltos à mão armada, dia sim, dia também, roubos contínuos, a situação tornou-se feia. Então começou a nascer o que é chamado de xenofobia, que eu entendo, nunca justifico, mas entendo.

A população aqui já estava cansada de agüentar. Então o venezuelano não é bem recebido, não é bem visto, sai daqui, volta para sua terra, não queremos você aqui. Essa é a resposta que o povo daqui de Pacaraima deu. Em princípio, vimos essa necessidade urgente da fome e organizamos esse café fraterno. No início, participaram 80 índigenas Warao, porque o primeiro a chegar aqui foi o indígena Warao, os que mais precisavam. Aqueles 80 acabaram se tornando 200, 500, até atingir números de 1600, 1700 cafés da manhã por dia.

Ora, todos sabemos o ato horrível que aconteceu há algumas semanas, que as pessoas não conseguiram acalmar sua raiva e atiraram pedras, queimaram onde os venezuelanos viviam na rua e desatou-se a raiva reprimida e foram perseguidos os venezuelanos. Desde então, o número de venezuelanos na cidade diminuiu ostensivamente. Atualmente vivemos uma aparente calma, não sabemos até quando, porque os sinais que vêm de Caracas não são nada bons. A imigração, eu acho, continuará, agora vai cair, mas continuará forte até que as coisas mudem em Caracas, o que será difícil.

Qual é a sensação dos venezuelanos em Pacaraima? Como eles reagem a essa situação que estão vivendo?

Quantas vezes eu escutei, padre, a gente vivia no inferno, agora estamos no purgatório e sonhamos com o paraíso que o Brasil nos oferece. O desespero, a angústia, é esmagado e destruído pela esperança. O povo venezuelano vem aqui com esperança, com muita esperança, aquela esperança que mata, que domina e que faz a angústia dormir. É um verdadeiro milagre que uma família com filhos, que está com fome, que não tem nada, não tem dinheiro, não tem casa, não tem amigos, mantenha ainda aquela forte chama de esperança. E eles vêm aqui confiando em um país como o Brasil, feito de imigrantes, um país que está na liderança como um exemplo de boas vindas. O que aconteceu agora eu digo que é como uma marca na água, não é normal porque o instinto do povo brasileiro é de acolhida. Então o povo venezuelano vem com essa forte esperança de que o Brasil é a terra prometida.

Temos na sala do café fraterno uma frase de São João que diz “sua angústia se tornará alegria”. Eu acho que quando pisam em solo brasileiro a ansiedade vai diminuindo e a alegria incipiente começa neles, a alegria que vem da esperança de ter encontrado um lugar para começar uma vida diferente. E também é interessante saber que esse povo que está aqui não está fazendo turismo, está aqui por causa da fome, mas é um povo que, você pergunta um por um, e não pensa em voltar para a Venezuela. Eles pensam em ficar, fazer uma nova vida, uma nova fase da vida aqui no Brasil. É um povo que vem para ficar, os indígenas também. Os indígenas Warao não pensam em voltar para a Venezuela, pensam em ficar aqui.

O senhor falou de xenofobia. Até que ponto a campanha política está ajudando a aumentar essa xenofobia, especialmente nesta região de Roraima?

A xenofobia tornou-se uma arma usada pelos políticos. Eu não digo que os políticos são xenófobos, pode ser ou não ser, mas atualmente isso dá votos e quando dá votos, isso interessa, viva a xenofobia. O momento que está passando o Brasil não é o melhor para o venezuelano vir aqui, para essa migração. Primeiro, porque a situação econômica, política e social no Brasil, todos nós sabemos, não é uma das melhores e, segundo, porque estamos à beira de uma eleição, e tudo é válido nas eleições. Então, acho que a incidência da política em relação à xenofobia é muito forte.

O senhor falou sobre café fraterno. Como paróquia, como diocese, qual é o trabalho que a Igreja Católica está realizando com os imigrantes?

Como eu disse, em primeiro lugar foi esse café fraterno, então, em maio, começou a organizar reuniões onde nós convidávamos autoridades locais, autoridades de Boa Vista, as pessoas daqui, o povo crioulo, que é o povo venezuelano que não é indígena, e os indígenas. Era uma reunião que reunia um grande leque de culturas e pessoas envolvidas nesta situação. Nessas reuniões, tentamos que reinasse o equilíbrio e a harmonia entre o venezuelano e o brasileiro, através das autoridades e do povo também.

Alertamos as autoridades, isso foi um trabalho desta Igreja, fomos pioneiros nisso, que a imigração era uma situação que estava começando e iria crescer. Dissemos isso há mais de um ano, não éramos profetas, simplesmente lemos o que iria acontecer. As autoridades e todos, a princípio, tentaram tornar o problema invisível, olhar para o outro lado. Lá nós tínhamos 300 ou 400 índios vivendo na rodoviária, no chão, suportando a chuva, o frio, a fome. O que foi feito por eles? Nada.

Quem nos ajudou muito foi a Igreja Mórmon, vinda dos Estados Unidos. Eles eram nossos aliados, foram eles que financiaram o abrigo que está atualmente em Pacaraima, refúgio no qual moram cerca de 400 indígenas. Atualmente a população indígena Warao aqui em Pacaraima pode ser cerca de 700 pessoas e aqueles indígenas warao têm onde viver e comer, porque através do exército e ACNHUR estão distribuindo comida todos os dias.

Outra medida nossa também foi a criação do Centro Pastoral do Migrante, dois lugares que organizamos para eles. Esta organização foi criada com a ajuda também das irmãs scalabrinianas, financiando parte deste projeto. Temos três funcionários trabalhando no Centro Pastoral do Migrante. E o que faz o Centro Pastoral do Migrante? Orientamos migrantes para os seus documentos de residência e levamos para o hospital aqueles que estão com uma doença perigosa, resolver dúvidas sobre a obtenção da carteira de trabalho, tem sempre pessoas no Centro Pastoral.

Dentro do campo religioso, outra das medidas, foi organizar a missa em espanhol. Todos os domingos, às cinco horas da tarde, mais de cem venezuelanos assistem à nossa missa. Nesta missa muitas vezes vem nosso amigo o bispo de Santa Helena, que é espanhol, Dom Felipe González, e ela é muito bonita. É cantado em espanhol, é cantado em português, é cantado em warao. E é sempre bem freqüentado, aqui na nossa paróquia.

Também foi criado o Centro de Assistência à Criança, que foi inaugurado há três meses e onde hoje acolhemos mais de duzentas crianças, na sua maioria indígenas Warao, mas também tem venezuelanos que não são indígenas e os monitores são indígenas Warao. Até o Ministro da Justiça, na última viagem que fez aqui a Pacaraima, nos visitou e sua visita foi com o objetivo de conhecer aquele Centro de Atenção Infantil. Lembro que as crianças cantaram o hino nacional brasileiro e o hino nacional venezuelano. Eles cantaram em espanhol, em português e em warao.

O que mais fazemos? Também dar, quando temos, comida, arroz, óleo, quase todos os dias damos cem quilos de alimentos que recebemos através de associações filantrópicas. Este último ano nós trabalhamos para a imigração.

Descuidei muito também, eu confesso, é um pecado, os meus deveres paroquiais, no sentido de que a pastoral do migrante tem-me ocupado todo o meu tempo. As pessoas não gostaram do meu desvio, entre aspas, da minha atenção progressiva para os imigrantes. Sou caluniado, eu sou o alvo de muita raiva, há relatos que dizem que sou o culpado de ter aqui tanto migrante venezuelano. Essas calúnias, toda vez que ouço caluniar me enche de orgulho e satisfação, cada vez que vejo um comentário tão negativo e calunioso, para mim é como se me impuseram uma medalha, um troféu.

Pode ser minha imprudência, mas eu não me arrependo em absoluto da trajetória que tenho dado ao meu trabalho paroquial aqui em Pacaraima, que é a de proteger os mais fracos, os mais necessitados, que agora são migrantes venezuelanos. Sem esquecer as palavras do Papa Francisco, que nas últimas semanas disse, não diga que é um cristão quem não recebe o imigrante. Há pouco a comentar sobre essa frase, você é um cristão, acolhe o imigrante, você não é um cristão, não o acolha.

Falando do Papa Francisco, o senhor tenta fazer realidade essa Igreja samaritana, misericordiosa, sobre a qual tanto ele nos fala?

Ele se refere a algo que eu uso muito também, o espírito do bom samaritano. É isso que tem que reinar, mas não apenas no nível da Igreja. O que estou dizendo, e não é o padre Jesus que diz, e sim um cidadão que diz, um ser humano que diz. Eu acho que todo ser humano tem que carregar esse instinto, essa emoção de ser fraterno. Deus nos criou assim, acabar com esse espírito fraterno do Bom Samaritano, é o que leva a tantas atrocidades.

O samaritano para, vê aquele que precisa e não pergunta. Eu sou acusado de proteger os bandidos, os malandros. Ele não pergunta, você é malandro, você é ladrão, de onde você está vindo, por que você está vindo? Não, ele vê a situação, não faz perguntas, não espera, nem pretende esconder e age rapidamente, ele age com esse sentimento, esse instinto de fraternidade, de misericórdia e gasta seu dinheiro, seu tempo, se preocupa. E ele não se pergunta se vai ter menos trabalho ou vai ficar mais pobre. Não, ele não se importa com isso, não. Ele está preocupado com a situação em que seu irmão está. Esse espírito do Bom Samaritano, eu não consegui aqui em Pacaraima, é uma falha do padre, não fazer nascer esse espírito entre os fiéis.

Aqui não reina o espírito do bom samaritano, reina o espírito de vingança, do vai embora, o espírito da não vou parar para falar com você porque eu vou perder meu tempo e meu dinheiro, reina o espírito do egoísmo, infelizmente.

O senhor não sente medo?

Eu me sinto ameaçado, não com medo. Acho que pode ser imprudência, mas não tenho medo, não tenho medo. O dia da manifestação veio aqui o Exército e a Polícia Federal querendo me tirar para fora da minha casa e eu disse que não. Depois eles me disseram várias vezes, padre sua vida está em perigo, tenha muito cuidado. Se a minha vida está em perigo, o que eu posso fazer. Eu digo brincando que se eles me matarem, meu processo de canonização vai ser rápido, isso é uma brincadeira minha.

Mas sei que sou o alvo da raiva das pessoas. Eu não vou mudar um milímetro do meu jeito de fazer. Vai continuar o café fraterno, vai seguir nosso desejo de ajudar os fracos e eu vou tentar cumprir esse mandato do Papa que diz, que não diga que ele é um cristão se não ajuda o imigrante. Eu também confio em meus paroquianos, este foi um tempo entre aspas de embriaguez. Repito que entendo essa raiva, mas não a justifico.

Espero que um dia esses católicos, que não sentem o desejo de ajudar o imigrante, também mudem. Eu acho que vai haver uma conversão e tudo vai se acalmar novamente. Agora há calma, mas muito enganosa, a qualquer momento eu tenho medo de novamente estourar a boca do vulcão e começar a cuspir lava de ódio.

Dom Pedro Casaldáliga diz que o medo é o oposto da fé. O senhor diz que não tem medo, é a sua fé em Deus que faz o senhor continuar e não ter medo diante dessas situações?

Eu vou lhe dizer uma coisa que pode parecer chocante, também que disse Santa Teresa de Calcutá, e atrasou um pouco a sua canonização, embora não exista Deus, vou continuar fazendo a mesma coisa. É claro que a fé, eu acredito em Deus, mas eu acho que o instinto de ser fraterno, ser compassivo, é tão superior, tão forte que eu também diria igual à Santa Madre Teresa de Calcutá, embora não haja Deus vou continuar impulsionado por aquele instinto do bom samaritano.

Claro que eu abraço minha fé e também abraço essa obrigação, é uma obrigação, de atender a quem precisa. É obrigação, não é dizer olha como eu sou bom, não, você é humano. Repito novamente, nas minhas afirmações quem fala não é o padre, não é o religioso, é o ser humano.

 

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