Por Gilvander Moreira
É tempo do natal de Jesus Cristo. Tempo para reconhecermos e celebrarmos o divino encarnado no humano. Como mistério de infinito amor, o Deus da vida se apaixonou pela humanidade, largou o céu, desceu para o planeta terra, nossa única Casa Comum – O divino está também em todo o universo -, e armou sua tenda no meio dos empobrecidos e injustiçados para anunciar o projeto de Deus, denunciar toda e qualquer forma de opressão, construir libertação de todos e tudo e, assim, nos motivar e inspirar na luta pela concretização de uma utopia: construir “novo céu e novo terra“, ou seja, libertarmo-nos das ideologias dominantes que desfilam um monte de mentiras que oprimem e matam o povo e construir novas condições materiais objetivas que garantam relações sociais sem opressão, para além do sistema do capital. O Deus da vida faz aliança de amor com o povo oprimido e superexplorado (Cf. Ap 21,1-5).
Deus se humaniza para revelar que o divino está no humano. No século II, Irineu, pastor da Igreja de Lyon, ensinava: “Como você poderá divinizar-se se ainda nem se tornou humano? Antes de tudo, garanta a condição de ser humano e, assim, poderá participar da glória divina“. Está enganado quem busca se divinizar sem se humanizar. Ao assumir a condição humana a partir de uma criança empobrecida, o Deus da vida nos ensina que, de fato, toda pessoa humana é “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,27) e “templo do Espírito Santo” (I Coríntios 6,19).
Os dois primeiros capítulos dos Evangelhos de Lucas e de Mateus, da década de 80 do século I, apresentam narrativas bíblicas sobre as infâncias do profeta João Batista e de Jesus de Nazaré, que de tão humano se tornou Cristo, ungido e enviado por Deus com a missão de testemunhar um jeito libertador e viver, conviver e lutar pela salvação de todos e tudo. Os evangelistas Lucas e Mateus afirmam que Jesus nasceu sem-terra e não latifundiário, nasceu sem-teto e não em mansão dos enriquecidos que acumulam riquezas, nasceu na periferia e não no centro dos poderes político-econômico e religioso. Logo após nascer em uma ocupação promovida por sua mãe, Maria, e seu pai, José, na periferia de Belém (em hebraico, Betlehem = Casa do Pão), o menino Deus teve que se tornar refugiado político e fugir para o Egito com Maria e José para escapar da perseguição do rei Herodes, vassalo do Império Romano na opressão e repressão ao povo. Abraçando as entranhas do humano a partir de uma criança de periferia, o Deus da vida nos ensina que revolucionário é cuidar amorosamente do humano em todas as pessoas, sem exceção, e seguir lutando para a construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver, com justiça agrária, justiça socioambiental, justiça urbana e respeito aos direitos humanos fundamentais. Jesus de Nazaré nasce nas brechas de uma sociedade escravizada pelo imperialismo dos romanos e discriminada pelo poder religioso do sinédrio comandado por uma elite econômica – os saduceus – que usava a religião para marginalizar os empobrecidos e os adoecidos, impondo a covarde lei da pureza e da impureza, que dividia as pessoas entre ‘puras’ e ‘impuras’. Os ricos e sadios eram considerados ‘puros’ e, por isso, abençoados, enquanto os empobrecidos, escravizados, adoecidos, “os órfãos e as viúvas” e os estranhos eram tidos como ‘impuros’ e, por isso, malditos.
O Evangelho de Lucas fala que os primeiros a reconhecerem o divino no humano, em uma criança, foram os pastores ao visitar Jesus, logo após seu nascimento na periferia de Belém (Lc 2,1-20). No Evangelho de Mateus, em Mt 2,1-12, está a narrativa da visita de magos a Jesus, passagem exclusiva das comunidades cristãs do evangelista Mateus. Para Mateus foram os magos os que por primeiro testemunharam a encarnação do divino no humano. Quem são esses magos? O texto só diz que eles vêm do Oriente, de onde o dia nasce e a vida recomeça. Os magos são pessoas sábias, porque viram a “estrela de Belém” que indicava o nascimento do “rei dos judeus”. Os magos têm intenções contrárias às do rei Herodes, que ficou alarmado e junto com ele toda a cidade de Jerusalém. Nem pela consulta às Escrituras Herodes, os sumos sacerdotes e os escribas se dispõem a reconhecer o divino no humano que acaba de nascer no meio dos injustiçados. Acontece então uma oposição muito significativa: aqueles que detêm o conhecimento e o poder da religião oficial ignoram Jesus de Nazaré, enquanto pessoas de outras culturas e práticas, que inclusive seriam condenadas pela lei judaica, como a consulta aos astros, reconhecem o nascimento daquele que iria testemunhar um caminho de libertação e salvação de todos e tudo, e vêm ao seu encontro.
Em Mt 2,1-12 temos o rei Herodes contra Jesus, Jerusalém contra Belém. Para os magos, estrangeiros do oriente, Jesus é “rei dos judeus” (Mt 2,2). Os magos reconhecem o poder popular nascido em Belém, cidade do pastor Davi, que organizou os injustiçados da sociedade para lutar pela conquista de um governo justo. O verdadeiro rei dos judeus não é violento como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa. Segundo o Evangelho de João, o nascido em Belém, “Casa do Pão”, se tornou Pão da Vida para todos. Os magos intuem com sabedoria que o poder democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos. A estrela que guia os magos representa as intuições e os anseios mais profundos da humanidade sedenta de justiça, paz e fraternidade.
Herodes, o rei sanguinário e opressor, tremendo de medo de perder o seu poder, tentou cooptar os magos secretamente, tentou obter informações que o ajudassem a liquidar a vida frágil. Herodes mentiu e fez propaganda enganosa para tentar descobrir onde estavam as forças de subversão ao seu poder tirânico. Mas as forças de vida – o divino no humano – foram mais espertas fazendo os magos voltarem “por outro caminho” e assim driblaram a armadilha de Herodes. Os magos romperam de uma vez por todas com Herodes, rei opressor, e com Jerusalém, cidade tratada como se fosse uma empresa. O sonho dos magos é a inspiração de que do poder opressor nada nasce de bom para a sociedade.
Atualmente, estamos em contexto de um antinatal do capitalismo, alardeado pelos arautos do mercado idolatrado, entre os quais está o Papai Noel, um mentiroso e fantoche do ídolo capital para seduzir as crianças e as famílias para consumirem até se consumirem e se desumanizarem gradativamente. Entretanto, ainda está em tempo de construirmos um mundo de justiça e paz para todos e tudo. Que nesse Natal e na virada do ano possamos revigorar em nós o desejo e o compromisso de viver e conviver de um jeito parecido com os magos do oriente e como os pastores de Belém (Lc 2,1-20) que reconhecem que o que liberta vem dos pequenos e oprimidos. Que não sejamos manipulados pelo Papai Noel do capitalismo e nem cúmplices dos Herodes de plantão!
Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Natal passa pelo respeito ao direito à moradia/Ocupação Vila da Conquista/BH/MG/Vídeo 2 – 23/12/18
2 – Natal na Ocupação Esperança, na Izidora/BH/MG. Almoço Comunitário: A força do amor. 23/12/18
3 – Vem, Senhor, com teu povo caminhar! – Celebração do Natal-Ocupação Vila Nova -BH/MG – 3a Parte -10/12/2017
4 – Celebração do Natal na Comunidade Vila Nova, Belo Horizonte. 2ª Parte. União na luta. 10/12/17
Belo Horizonte, MG, 17/12/2019.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br –
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