Parece uma pergunta tão conhecida e comum que todos responderiam facilmente. Minha família são meus pais, irmãs, irmãos, avós etc. Mas, quero convidá-los a pensar de novo sobre famílias, seu pluralismo e seus muitos sentidos nesse mundo complexo que é o nosso. Família não é apenas o conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto ou têm laços de sangue. Deixem-me explicar.
Num desses dias li um conto que se chamava ‘Di Lixão’ da grande literata Conceição Evaristo. Di era um jovem de 16 anos que vivia na rua e da rua. Morava num quarto-marquise no centro de uma grande cidade. Havia outros jovens na mesma situação que ele. Mas ele, numa madrugada fria sofria de muita dor de dente, o rosto estava inchado e o céu da boca cheio de bolhas de pus. Era o pus do mundo ali concentrado. E ainda mais Di estava sozinho. Se lembrava que a mãe havia morrido, mas não gostava dela. Não tinha pai conhecido. Nessa mesma noite piorou e morreu abandonado à sua própria dor. Conto resumidamente essa estória para perguntar a mim mesma e a vocês o que é família?
Não vou escrever sobre as famílias ideais, aquelas constituídas por figuras estáveis, aquelas que tem mãe fazendo comida abundante ou aquelas que um ônibus escolar vem buscar as crianças bem nutridas, que recebem presentes de aniversário de seus pais e de Papai Noel no Natal.
Quero alertar nosso coração para uma família maior a família humana abandonada. Somos família humana mas só consideramos família aos que nos são bem próximos. Di era de que família? Era um sem família como os muitos sem-teto, sem-terra, sem-escola, sem-documento, sem trabalho e sem pátria. A partícula sem acaba dando a muitas pessoas sua própria identidade. Definem-se pelas carências, pelo que lhes falta, pelo que não são.
Como nos aproximarmos uns dos outros para que sejamos não um modelo de família socialmente reconhecido, mas apenas membros da família humana, necessitados uns dos outros? Não sei lhes responder e nem quero dar conselhos ou fazer pregações inúteis. Mas quero apenas provocar a nossa reflexão nesses tempos difíceis em que estamos vivendo. A história de Di me fez pensar em tantas outras crianças e jovens abandonados à própria sorte que só tem como sobrenome ou nome de família Lixão. O Di pertencia ao lixo da cidade, ao lixo da humanidade. Comia das sobras jogadas. Dormia ao relento. Brigava com outros pela cobertura da marquise em dia de chuva. E, bem perto de onde ele morava havia bancos, caixas econômicas todas repletas de dinheiro acumulado, inútil para ele. E mais longe era o Palácio do Governo repleto de riquezas, de quartos amplos, de iguarias e de servidores. Não eram de sua família? Mas o que é mesmo família? Somos uma HUMANIDADE, uma família de uma espécie da TERRA. Todos os seus habitantes deveriam ser da família de Di, visto que são da mesma humanidade, da mesmíssima família humana. Mas a divisão entre nós, a ganância, a crueldade tornou nossos corações de pedra e nos distanciou uns dos outros. Passamos a ser inimigos, com medo uns dos outros,
De nada vale pedirmos para que sigamos o exemplo ‘da sagrada família’ na qual nasceu Jesus. Ele na realidade preferiu ser da família de Di e por isso andou pelas vielas de Jerusalém, de Betânia e de Belém na companhia dos pobres e marginalizados. Os poderosos não suportaram sua voz, suas ações e mataram-no numa cruz. Talvez por perto desse lugar também houvesse um Lixão e Di estava em sua companhia como para convidar-nos a ser uma família só , uma humanidade plural e única, onde pão e vinho não faltem em nossa mesa comum e sejam equitativamente divididos.
Que faremos para ser uma família única?