Por Ivone Gebara
Quando alguém sendo cristão pergunta o que é ser cristão somos convidados/as a pensar com seriedade em como responder-lhe ou em como entender sua questão. E pensando, descobrimos rapidamente o quanto hoje está difícil responder a essa pergunta.
Se fizermos uma breve pesquisa com dez pessoas cristãs de idades semelhantes, de origem social e opção política diferente, ficaríamos, talvez, espantadas de verificar que houve dez respostas diferentes apenas unidas pela palavra ‘cristão’. E se nos dirigirmos a uma mesma igreja cristã e nos informássemos sobre a postura de seu clero e de seus fiéis verificaríamos que também entre eles as divergências sobre o sentido do ser cristão são abundantes. Alguns repetirão o Credo de Nicéia com convicção, outros sem nenhuma convicção e outros ainda como uma oração mágica para espantar fortes demônios. Alguns se referirão ao que aprenderam na infância e o quanto mudaram sua teologia e sua explicitação da fé cristã. E finalmente outros ainda afirmaram ter abandonado o cristianismo por não sentir mais o que antes julgavam ser sua fé.
Há uma mobilidade crescente de sentidos e de práticas religiosas que revelam que a palavra ‘cristão’ passou a ter uma multiplicidade de significados que variam segundo pessoas e grupos. Nesse sentido podemos dizer que ela perdeu a antiga força e distinção identitária de seu significado passando a guardar apenas o nome que expressa uma diversidade de comportamentos muitas vezes contraditórios entre si. O nome cristão passou a ser um guarda-chuva com diferentes hastes cada uma com um nome e estas hastes sustentam ainda mil e um fios de muitas cores e espessuras. A irrupção da diversidade tão forte e importante na atualidade tocou também os credos religiosos e tem criado inúmeras dificuldades.
Muita gente vai dizer que para ser cristão bastaria ler a Bíblia e de maneira especial o Novo Testamento. Mas, sabemos bem que dificilmente teremos uma resposta comum através dessa leitura. Ela também participa da diversidade de interpretações do mundo no qual vivemos. Cada interprete vai interpretar segundo a visão de mundo que defende. Alguns dirão: “foi isso que Jesus disse”! Outros dirão: “Não, não foi isso, pois no contexto do texto há outros elementos”. Ou alguns eruditos dirão: “no grego antigo tal expressão do Evangelho significa isso e não aquilo”. Criamos, de forma quase inevitável, conflitos de interpretação e acirramos ainda mais as polarizações muito presentes na história de hoje criticando-nos uns aos outros sem dar o passo necessário na defesa da vida dos necessitados. Acresce a esse fato o uso indiscriminado da religião para sustentar argumentos de políticos inseguros em relação a sua postura de representantes do povo. É fácil atribuir a Deus a justificação de seus atos.
Alguns dirão, vamos perguntar ‘o que é ser cristão’ ao Papa Francisco, ao Presidente do Conselho Mundial de Igrejas ou ao bispo… Vamos ver o que está escrito nos documentos do Concílio Vaticano II ou nos livros do bispo Edir Macedo ou do Padre Marcelo Rossi, ou nos livros dos teólogos da libertação… Talvez eles nos dêem uma resposta segura que oriente nossos caminhos. Entretanto, todas essas atitudes e consultas parecem hoje insuficientes para precisar um sentido único para o que é ser cristão.
Um estado de insegurança social e emocional toma conta de nós e nos convida a querer sair dele para retomar algumas pequenas certezas e poder agir. Falo de ‘pequenas certezas’ porque estamos vivendo esse tempo especial de difícil diálogo e compreensão entre os seres humanos. Enquanto as ciências físicas fazem grandes descobertas e nos introduzem em certezas científicas, no plano das relações humanas cotidianas temos que nos contentar com as ‘pequenas certezas’. Como nascem elas e como justificam nossos comportamentos?
Elas começam no reconhecimento da dor do outro/a e de minha implicação direta ou indireta nela. Reconheço a dor do outro/a quando me aproximo dele/dela, quando não só como observador, mas permitindo que ele me fale dela, que a descreva e que me diga ‘o que quer que eu faça’. E essa proximidade tem que ser mais ou menos cotidiana acompanhando a mutação da vida de cada dia. Permitir que outros/as participem da solução para sua dor, não obrigá-los a entrar diretamente na minha ideologia, na minha análise, no livro de sociologia política que acabei de ler, na minha opção do que é o bem. Este parece ser um caminho importante, porém difícil, um caminho que faz pensar e se inspira na ‘porta estreita’ da qual os Evangelhos falam. A porta do amor e da justiça é estreita isto é, é difícil de ser encontrada, vivida e mantida porque sempre achamos que a entrada que oferecemos é a melhor. E empurramos as pessoas mais frágeis para entrar sem convidá-las a olhar a porta, a examiná-la, a desejá-la, a perceber que há consequências para essa entrada…
Ao entrar por essa porta não temos nenhuma certeza de que o mundo será modificado por nossa intenção de amor e justiça ou por nossos aparentes eficazes planos de conversão ao bem. E isto porque além das muitas outras intenções de amor e justiça que existem em muitas pessoas há também gente que não se sente obrigada a amar os pobres, os marginalizados, os excluídos, os injustiçados. Há muita gente que escolhe amar a si mesmo e aos parentes e amigos próximos como prolongamento de seu próprio eu. E o mais espantoso é que se trata de gente que também se diz cristão e busca a prosperidade para si mesmo! Há também os que dizem “o mundo foi sempre assim, pobre tem que sofrer” como uma espécie de aceitação de um destino injusto mantido por desígnios ocultos.
A ‘porta’ da qual nos fala o Evangelho não traz nenhuma certeza aos que resolverem entrar por ela… Não traz nenhuma garantia de realização, nenhuma acolhida triunfal, nenhum reconhecimento e glória. Muitas vezes leva a crucifixão, à expulsão dos templos, à perseguição cotidiana, ao desamparo total.
Há coisas bonitas nos Evangelhos que poderiam explicitar ainda mais o que é ser cristão ou seguidores de Jesus Cristo. Parecem claras, mas não são. Refiro-me especialmente ao Evangelho de Mateus 25… “eu tive fome e me deste de comer, sede e me deste de beber, estava nu e me vestiste, na prisão e me visitaste”…
Estas exortações que testemunham o rumo do encontro com Deus nos movem o coração e as entranhas pela simplicidade dos gestos. Mas essa simplicidade desnudada de poder nem sempre foi de fato reconhecida como irrupção do divino no meio de nós. Como pode Deus estar no faminto, no sedento, no prisioneiro? Foram identificadas ao assistencialismo que as instituições mais ou menos promovem.
As comparações trazidas pelo Evangelho de Mateus são nascidas num ambiente mais ou menos rural que permitia práticas e relações de vizinhança e de proximidade. O pobre, o órfão e a viúva eram conhecidos… Mas agora diante da multidão de famintos, emigrantes, sem terra e sem teto, doentes, insanos o que é mesmo ser cristão? Vemos que só os cristãos não dão conta de resolver tantos problemas tornados ainda mais difíceis com as políticas capitalistas de supremacia do dinheiro sobre as pessoas e o planeta. E sabemos o quanto há de cristãos nas maiores empresas capitalistas que se calam e até promovem a exploração de uns e outros justificando suas atitudes através das leis da economia capitalista.
No fundo diante de tantas dores outras religiões poderiam fazer a si mesmas a mesma pergunta: o que é ser budista? O que é ser muçulmano? O que é ser do Terreiro? Da Jurema? Da umbanda? Espírita? E outras crenças e religiões… Como podemos tornar-nos melhores e melhorar nossas relações no mundo? Esta é uma para nós crentes e não crentes numa dimensão religiosa.
Cada vez mais penso que o tipo de pergunta sobre a ‘pertença identitária’ apesar de sua relativa importância não deveria ser mais formulada ou acentuada nesse momento de nossa história. O monte de siglas religiosas tem se mostrado no contexto atual nefasto, divisor, conflitivo apesar da compreensão que possamos manifestar em relação à sua história. É como a quantidade de partidos políticos e suas múltiplas tendências. Cada um quer ser melhor do que o outro, guardar sua ilusória especificidade, seu poder pequeno ou grande. Porém a dor do mundo é maior, a plantação crescente da fome espantosa, a violência armada atordoante. Todos querem se ufanar da solução que propõem através de palavras, projetos, soluções imediatistas, porém muitas vezes mais distantes dos corpos reais sofredores.
A diversidade de cristianismos e das outras religiões revela mais separação do que unidade, mais monólogo do que diálogo, mais ódio e competição do que amor e solidariedade.
Cada vez que cresce a consciência da diversidade social e religiosa com ela crescem as divisões entre nós, os ódios recíprocos, as vinganças sem fim. E se apenas buscássemos perceber a dor dos outros sem siglas, sem textos de base, sem obediência a uma tradição, sem pastores, sem templos especiais? E se considerássemos apenas a diversidade de nossa condição humana, condição da vida do planeta e condição da Vida na qual somos? E se apenas deixássemos que a criatividade dos sofredores pudesse falar e se deixássemos que nossa dor também nos falasse, talvez, saberíamos melhor o que é ser simplesmente humano. Talvez pudéssemos nos organizar melhor em favor de nossa dignidade e da dignidade dos seres viventes…
Sei que estou me referindo a um desejo, a uma aspiração provocativa. As muitas tradições religiosas com suas diferentes riquezas tocam a busca de sentidos para a vida humana e têm grande valor. Entretanto, quando são cooptadas pelos sistemas de competição que criamos, quando se fracionam para agradar os individualistas, quando dividem, quando se armam contra os pequenos perdem seu sentido agregador e convocador do bem. Por isso, abrimos a possibilidade de pensar nossas relações para além delas, sem no entanto deixar de reconhecer sua existência e a sabedoria que carregam.
Estamos precisando redescobrir a ternura em nossa humanidade, a absoluta interconexão entre todas as vidas, a poesia de um céu azulado e de uma noite escura cheia de estrelas. Precisamos redescobrir os olhos uns dos outros deixando um pouco de lado a tela do celular ou da TV. Precisamos nos ouvir mais sem enquadrar uns e outros em siglas e em conceitos. Necessitamos ouvir outras vozes sem querer reagir depressa demais, julgar no imediato como se dentro de nós vivesse um tribunal aberto dia e noite.
Foto de Capa: Foto: Shutterstock , no site A12