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O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), acaba de tomar uma decisão de valor excepcional, pela qual os governos (municipais, estaduais e federal) têm de se ocupar com as pessoas vivendo em situação de rua. A decisão do ministro foi motivada por uma ação protocolada no Supremo pelos partidos PSOL e Rede Sustentabilidade e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Os autores da ação alegaram omissão do Executivo e Legislativo ao longo do tempo na implementação de políticas para quem vive nas ruas do país, previstas em um decreto presidencial de 2009 (cf. Decisão do Ministro). 

É uma população que cresceu nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia, e devido à ausência de políticas públicas específicas. Em um estudo do IPEA, a “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil” (2012-2022), calculou-se que 281.472 pessoas compunham a população em situação de rua em 2022. Houve um crescimento de 211% nesta população na última década (2012 a 2022), porcentagem bastante desproporcional ao aumento de 11% da população brasileira em período similar (2011 a 2021), segundo estimativa do IBGE (Decisão, p. 18). 

As pessoas não foram para a rua por escolha própria, foi o resultado de uma série de revezes na vida pessoal e familiar e pela falta de apoio público para enfrentá-los. Segundo Censo realizado em São Paulo em 2019, entre as principais razões que levam as pessoas à rua estão: conflitos familiares, dependência química, perda de trabalho e perda da moradia (Decisão, p. 23). Embora sejam aqueles que vivem em pior situação, são vítimas de preconceito e, inclusive, de maus tratos por parte dos poderes públicos em alguns municípios, com a guarda municipal retirando barracas, cobertores, colchões, roupas. Em suma, são pessoas que não têm direito a ter direitos. São, como afirma o Papa Francisco, descartáveis.

O trabalho do Padre Júlio Lancellotti, voltado à assistência à população em situação de rua na cidade de São Paulo, é citado no texto do Ministro. “Sua atuação trouxe à tona a discussão sobre a questão, pontuando a aporofobia (rejeição aos pobres) direcionada às pessoas em situação de rua pelo Brasil”. Padre Júlio denunciou a Arquitetura Hostil ou Arquitetura de Exclusão, que consiste em montar estruturas que dificultam a instalação de pessoas nos espaços urbanos, como pedras sob viadutos e peças de metal em bancos públicos. Graças a estas denúncias, foi promulgada a Lei 14.489, de 21 de dezembro de 2022 (conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti), a qual altera o Estatuto da Cidade para que seja “vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população” (Decisão, p. 24-25).

Falta de políticas públicas: em primeiro lugar, a garantia de trabalho. Com o aumento do desemprego, que já era alto antes da pandemia, muitos ficaram sem condições de manter suas moradias e famílias inteiras foram parar na rua. São Paulo contabilizou em 2023 mais de 52 mil moradores de rua, segundo pesquisa (O Globo, 05/04/2023). Um levantamento da Prefeitura do Rio de Janeiro mostrou que o número de pessoas em situação de rua aumentou 8,2% desde 2020: são 7.865 pessoas (O Globo, 14/04/2023). Os especialistas consideram que, em ambos os casos, o número está abaixo da realidade.

Com a decisão tomada, será obrigatória a existência de políticas públicas para estes cidadãos, não poderão mais ficar entregues ao deus-dará. As prefeituras terão de fazer levantamento de quantos vivem nesta situação e oferecer planos de ação. Moraes determina que as autoridades “proíbam o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua; vedem o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua, bem como efetivem o levantamento das barreiras e equipamentos que dificultam o acesso a políticas e serviços públicos, assim como mecanismos para superá-las; disponibilizem bebedouros, banheiros públicos e lavanderias sociais de fácil acesso para população em situação de rua; (…).”

Segundo a Decisão, “esse grupo social permanece ignorado pelo Estado, pelas políticas públicas e pelas ações de assistência social. Em consequência, a existência de milhares de brasileiros está para além da marginalização, beirando a invisibilidade” (p. 17). Desde 2009 (ano do decreto que criou a Política Nacional para a População em Situação de Rua ) até 2020, “apenas cinco estados (Distrito Federal, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e Pernambuco) e 15 municípios (São Paulo (SP), Goiânia (GO), Curitiba (PR), Maceió (AL), Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC), Rio Branco (AC), Uberaba (MG), Recife (PE), Passos (MG), Novo Hamburgo (RS), Foz do Iguaçu (PR), Serra (ES), Juiz de Fora (MG), Fortaleza (CE)) aderiram” a esta política. “Portanto, em 12 anos, a política ainda não conta com a adesão da grande maioria dos entes federativos descentralizados” (Decisão, p. 15). 

É de se esperar que, a partir de agora, os governos evitem agravar as condições de vida da população em situação de rua retirando seus poucos pertences e tomem providências para apoiá-la – abrigo, proteção, cobertas, água, alimentação – e viabilizem meios para que possam sair desta situação.

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