Sínodo para a Sinodalidade 2024

Sínodo: ouvir as vítimas

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Do IHU.

“Enfrentar adequadamente a questão dos abusos, com um olhar realmente espiritual e ao mesmo tempo humanamente livre, não é apenas o fruto de uma necessidade de reparação do passado e de prevenção no futuro. Muito mais está em jogo: o destino da evangelização e do testemunho eclesial. A cultura, a formação, a educação, o direito, a doutrina e tudo o que é chamado em jogo pelo crime ou pela gestão criminosa de suas consequências é um impedimento à evangelização, uma desvantagem para o testemunho eclesial, uma distorção do fato cristão”, escreve Gennaro Pagano, presbítero diocesano de Pozzuoli, psicólogo e psicoterapeuta, em artigo publicado por Settimana News, 13-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

A celebração do Sínodo, evento eclesial de importância primordial, e a desconcertante questão dos abusos, com seu rosário rezado sobre centenas de mistérios dolorosos, tantos quantos são os nomes, as histórias e os relatos das vítimas.

As liturgias, os diálogos, os instrumentos de trabalho, as muitas celebrações diocesanas, bispos e padres em atividade frenética, alguns leigos e algumas mulheres convidadas como representantes de um planeta distante, a máquina de comunicação a mil, entre necessidade de contar com fidelidade o que está acontecendo e temor de que nada saia dos trilhos definidos desde o início.

Em todo esse processo, que certamente pode representar uma oportunidade de renovação eclesial, de verificação comunitária, de crescimento espiritual e de mudança de práxis, que espaço terá a escuta das vítimas dos últimos cinquenta e tantos anos?

O que agora se fala em todos os continentes, e de que a situação francesa é apenas o último elo de uma longa cadeia, terá direito à cidadania no coração – e não nas margens – do percurso sinodal?

Essas dores inocentes serão destinadas a ser temas tratados nos nichos de alguns círculos menores, dossiês dados em estúdio a alguns especialistas em psicologia, moral e direito canônico ou, em vez disso, serão elevados a ícones dolorosos a serem contemplados, a lugares teológicos em que escutar o Espírito que fala livremente das feridas daqueles que foram trespassados pelo poder e pela cultura clerical?

Papa Francisco acaba de pedir “para transformar certas visões verticais, distorcidas e parciais sobre a Igreja, sobre o ministério sacerdotal, sobre o papel dos leigos, sobre as responsabilidades eclesiais, sobre os papéis do governo e assim por diante”, todas dimensões que, olhando bem, se escondem por trás do drama dos abusos, cuja ocorrência, juntamente com as modalidades de silêncio conivente de gestão, remete precisamente a um poder sacro vertical, sem contrapesos, a uma ideia de padre (e bispo) como monarca das realidades a que é chamado a servir, em que os leigos podem no máximo aspirar a ter um papel consultivo, de conselho, de “yes man” (os “no man” são sempre postos à porta logo) mas sem qualquer responsabilidade real, concreta e autônoma. Porque isso é o que a doutrina sacramental e o direito canônico desejam na maioria dos casos.

Um livro de Silvano Fausti intitula-se Ocasião ou tentação: nenhum título seria mais adequado para o vínculo reflexivo que poderia unir o evento único do Sínodo com os milhares de abusos criminosos.

Todos nós sabemos que a Igreja certamente não é um lugar onde, mais do que em qualquer outro lugar, esses crimes acontecem. Mas também sabemos que são sempre resultado de uma assimetria relacional, de um sistema de poder e de um mecanismo de ocultação silencioso que é imensamente distônico em relação ao Evangelho de Cristo e à concepção da comunidade e da autoridade que deles derivam.

Enfrentar adequadamente a questão dos abusos, com um olhar realmente espiritual e ao mesmo tempo humanamente livre, não é apenas o fruto de uma necessidade de reparação do passado e de prevenção no futuro. Muito mais está em jogo: o destino da evangelização e do testemunho eclesial.

A cultura, a formação, a educação, o direito, a doutrina e tudo o que é chamado em jogo pelo crime ou pela gestão criminosa de suas consequências é um impedimento à evangelização, uma desvantagem para o testemunho eclesial, uma distorção do fato cristão.

Para isso é necessário discernir o que nesta cultura, na educação e na formação dos presbíteros e do laicado, no direito e na doutrina, tem motivos para ser defendidos ou precisa de uma purificação concreta e de uma reforma radical (que não pode ser reduzida a um mero ajuste estilístico).

Mais do que nunca, tudo necessita de um juízo sereno e de um discernimento saudável e espiritual que só o pode ser tal se for realmente comunitário, porque, se é verdade que a Igreja não é uma democracia, também é verdade que corre o risco de se tornar (ou já ser) uma oligarquia.

Hoje, mais do que nunca, é necessária uma fantasia espiritual para saber como proceder, para encontrar o método certo, para caminhar juntos na escuta do Espírito que fala não “sobre”, mas “na” história.

Não me sinto um profeta da desgraça ao afirmar que será justamente a história, pela graça de Deus, que mais cedo ou mais tarde nos despojará de tudo: do dinheiro, de estruturas, dos muitos adereços que acreditamos serem o nosso proprium, mas que representam apenas o nosso lastro.

Aquilo de que ninguém poderá nos despojar é o Evangelho e o testemunho de caridade e de liberdade que dele deriva. Se a vergonha dos abusos nos ajudará a lembrá-lo, se tornará um motor da mudança necessária, para que seja recuperada a centralidade do Evangelho e não da estrutura eclesial que está ao seu serviço, a força do amor e não do autoritarismo clerical, o dom da liberdade e não o jugo do servilismo laical.

Se isso não acontecer, não há por que temer, porque o Espírito saberá ampliar invisivelmente as fronteiras da Igreja, criando espaços de salvação e de redenção em lugares diferentes de nós, até distantes, talvez marginais, até considerados impuros por nós, mas capazes mais do que nós de encarnar realmente uma Igreja diferente da que somos hoje.

Francisco, citando o Padre Congar, nos lembrou basicamente isto: “Não é preciso construir outra Igreja, é preciso criar uma Igreja diferente”.

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