ColunistasIvo Lesbaupin

60 anos do golpe militar – por que fazer memória?

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

“Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento”. 

Papa Francisco, Fratelli Tutti, p. 246

Quando se observam manifestações da direita na Argentina, não se veem cartazes pedindo “intervenção militar”. Por que? Porque a sociedade – ou ao menos a maioria da sociedade – sabe o que foram os 7 anos de opressão, repressão, tortura e morte que caracterizaram a ditadura militar lá (1976-1983). A maioria não viveu aqueles anos, mas acabou sabendo, particularmente graças ao processo judicial que os militares tiveram que enfrentar. E os avós passaram este conhecimento aos filhos, e os filhos aos netos. O filme recente, “Argentina 1985”, retrata bem isso. Os jovens puderam ver o filme e saber.

Quando nós vemos as manifestações da direita no Brasil, percebemos muitos cartazes pedindo a volta dos militares, a volta da ditadura. As pessoas, a maioria das pessoas na sociedade brasileira, não sabe o que foi a ditadura (1964-1985). Muita gente acha que foi um período bom, onde havia “liberdade de expressão”, não havia violência, não havia criminalidade, havia progresso, emprego, bons salários. As pessoas não sabem que era proibido manifestar-se, era proibido criticar, a oposição era proibida, era proibido pensar e, portanto, não havia liberdade, muito menos “de expressão”.

Ditadura significa falta de liberdade: de pensar, de falar, de se reunir, de se organizar, de ir para as ruas. No período em que houve alguma liberdade de ação (1964-1968), ir participar de uma manifestação era preparar-se para ser espancado pela polícia.  Depois do AI-5, em 1968, ser oposição à ditadura era arriscar-se à prisão e à tortura. E, eventualmente, à morte. Instituições religiosas foram perseguidas: no caso da Igreja católica, em dez anos (1968-1978), 122 padres, religiosos, seminaristas e 273 leigos ligados a organismos pastorais foram presos, 7 padres ou seminaristas foram mortos, 10 padres estrangeiros foram expulsos do país, 29 bispos foram atingidos de alguma maneira.

Não havia liberdade de escolha, as eleições presidenciais diretas foram supressas durante 29 anos (de 1960 a 1989) – e, de 1965 a 1982, não houve eleições para governadores. Durante vinte e um anos, quem decidia os rumos do país era uma minoria – os militares e os grandes grupos econômicos –, que realizavam políticas públicas a serviço de seus interesses, sem participação da grande maioria da sociedade.

A ditadura reduziu os vários partidos existentes a dois: um partido governista (ARENA) e outro que podia discordar um pouco (MDB). Os parlamentares eleitos estavam sujeitos a perder o mandato simplesmente por pensarem de forma diferente. Foram cassados 173 deputados federais e 8 senadores. 

A famosa Lei da Anistia (1979), da qual se fala que foi resultado de “negociação” entre situação e oposição, foi aprovada no Congresso graças à votação dos parlamentares da Arena. Os militares fizeram aprovar esta lei, que anistiava os presos políticos e os exilados (com algumas exceções), mas também anistiava todos os torturadores e seus mandantes. O absurdo é tal que torturadores nazistas (de uma guerra que terminou há 80 anos) ainda podem ser processados e condenados, mas torturadores da ditadura militar (que terminou há 40 anos) ficam impunes. Em direito internacional, a tortura é um crime imprescritível. Esta lei deveria ser derrubada.

Era tempo de censura. A começar pela imprensa: os jornais só podiam publicar o que a ditadura permitia. Estadão e Jornal da Tarde chegaram a publicar receitas de bolo no lugar das matérias censuradas. Os jornais televisados, mais ainda: foi neste período que a Globo se tornou a maior rede de TV (graças aos recursos oferecidos pela ditadura). Inúmeros livros foram proibidos, houve numerosas fogueiras de livros (como nos tempos do nazismo), inúmeros autores foram proibidos, muitas músicas foram censuradas (de Rita Lee, Caetano, Gil, Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara, Toquinho, Aldir Blanc…). Foram censuradas 159 músicas em 1973, 198 em 1976, 458 em 1980. Caetano e Gil foram presos por dois meses em 1969 e tiveram de se exilar (em Londres). Rita Lee, grávida, foi presa por várias semanas, em 1976. Chico Buarque foi várias vezes à polícia, onde era interrogado para justificar suas composições. Ainda assim, teve muitas canções censuradas.

Havia um clima de vigilância permanente. As pessoas não conversavam abertamente porque podiam ser denunciadas e, daí, presas. Professores eram espionados e muitos foram perseguidos, alguns foram expulsos. A universidade era particularmente visada.

A partir do Ato Institucional no. 5 (AI-5), a tortura se tornou o método usual de interrogatório policial e muitos sofreram sequelas graves, físicas e/ou emocionais, além de centenas de mortos ou desaparecidos. Dezenas de tipos de tortura foram utilizados, desde o “pau-de-arara” aos choques elétricos, o “afogamento”, a “cadeira-do-dragão” e inúmeros outros. 

Houve milhares de torturadores, militares e policiais civis, que se esmeraram nesta “profissão”, para garantir a continuidade do regime ditatorial. Diferentemente dos presos políticos, exilados ou mortos/desaparecidos, que foram processados e julgados, os torturadores e seus mandantes nunca foram processados: seus malfeitos, assim como as consequências de seus atos sobre as pessoas, ficaram ocultados, longe de qualquer escrutínio público. Exerciam funções públicas, mas nunca foram cobrados pelo que fizeram. Nem tampouco seus mandantes. 

Aí está a gravidade da situação: a sociedade desconhece o que aconteceu – ou conhece muito pouco -, os fatos não foram analisados nem julgados, os criminosos ficaram impunes. O que sabemos hoje sobre o nazismo, nós o sabemos porque as tropas que libertaram a Alemanha (e os demais países subjugados), revelaram ao mundo o que descobriram. Houve um julgamento público – o Julgamento de Nuremberg – dos mandantes e dos executores. Nós ficamos sabendo dos campos de concentração, dos planos da “Solução Final”, dos experimentos científicos feitos em prisioneiros. Existem, até hoje, campos abertos à visitação pública. Para que não se esqueça, para que não mais aconteça

Nossa sociedade precisa saber do que aconteceu, precisa saber a verdade sobre a ditadura. Porque, se souber, não vai querer que se repita, não vai querer perder a liberdade que conquistou a duras penas. Não vai querer ser dirigida por uma minoria que se autoproclame como melhor que a grande maioria e que imponha à força suas ideias. Não vai querer que seus filhos ou netos possam vir a ser perseguidos, presos e torturados e, talvez, mortos por um regime ditatorial. 

Pelo direito à memória, à verdade, à justiça!

Artigos relacionados

Deixe um comentário

Botão Voltar ao topo